Música Sertaneja em Uberlândia (relato)
Martha Tupinambá de Ulhôa
Inicialmente alguns pressuspostos
básicos deste relato parcial: (1) Música é um objeto tanto estético quanto histórico,
por um lado com uma relativa autonomia nos seus aspectos universais, por outro dependente
de conceitos, valores e escolhas determinadas por grupos sociais distintos; devemos deixar
que ela mesma nos aponte as direções para sua análise e crítica; (2) Música é um
modo de comunicação humano, não existe isolada das pessoas para as quais ela tem um
significado. Este estudo enfoca a música sertaneja do ponto de vista do que Howard Becker
(1977) chamaria de seu "mundo artístico", tratando de discutir sua estética a
partir das práticas e representações de seus atores principais, entusiastas,
especialistas e fãs do gênero. 1
Dados etnográficos coletados em
Uberlândia, sobre parâmetros para a avaliação da música sertaneja sugerem uma
representação estética que os estudos da música brasileira ainda não se confrontaram.
A música sertaneja, seja de "raiz", seja "romântica", privilegia
elementos sonoros "extra-musicais", que não seriam considerados arte pelos
cânones de excelência artística hegemônicos. No entanto, existe uma concepção
"nativa" do que seja música sertaneja de qualidade, uma estética da música
sertaneja, que será o foco deste relato.
A música sertaneja originou-se na
região cultural caipira e era chamada tradicionalmente de música caipira2. As modas-de-viola e toadas caipiras, que
começaram a ser gravadas na década de 30 por Cornélio Pires, são cantadas em terças
paralelas por um duo, geralmente masculino, com timbre nasal e uso acentuado de um tipo de
falsete, que Edmar Ferretti classifica como falso falsete, pois na performance dos tenores
sertanejos, é mantida uma alta impedância e tensão vocais, inclusive nos agudos que
alcançam às vêzes a extensão de soprano3
Freqüentemente essas "toadas" têm um contorno melódico bastante próximo da
linguagem falada, isto é, empregam extensão e intervalos pequenos. Dos anos 40 até
meados dos anos 60, o gênero passou por um período de transição, cuja característica
principal foi a incorporação de rítmos, estilos vocais e instrumentais de origem
paraguaia e mexicana (como a guarânia e a ranchera). No final dos anos 60 começa a fase
moderna da música sertaneja com a incorporação do chamado "ritmo jovem" ,
derivado da Jovem Guarda e da balada internacional, bem como a modificação do contorno
melódico, que passa a ser ondulado e lírico.4
Hoje a música sertaneja tem duas
subdivisões básicas: música sertaneja raiz e o que chamo de música sertaneja
romântica. A primeira se refere às tradições caipiras, com uma temática de origem
rural e caráter geralmente épico ou satírico-moralista e menos frequentemente, lírico;
a última se refere a canções gravadas principalmente a partir dos anos 80, usando uma
temática urbana e de caráter romântico-indivualista.5
Na década de Oitenta, a música
sertaneja se tornou bastante visível nas áreas urbanas brasileiras. Até então seu
espaço eram os circos, os programas radiofônicos na aurora do dia, os quadros
humorísticos no teatro radiofônico e depois televisivo. Nos anos oitenta, o número de
vendagem da música sertaneja, o tempo de rádio e TV a ela devotado, e o número de shows
em bares, estádios, e campanhas políticas cresceu tanto que o gênero foi considerado um
novo fenômeno musical no Brasil. Na realidade a música sertaneja, especialmente na sua
vertente mais moderna representa a manifestação mais marcante da consolidação do
mercado musical de massa no Brasil (ZAN 1944). 6
Meu primeiro contato com este gênero
foi durante a minha pesquisa de doutoramento quando fiz uma descrição estilística da
música sertaneja a partir de dados coletados com especialistas e aficionados da mesma em
Montes Claros, norte de Minas. No final de 1991 chego a Uberlândia, onde, mais que em
Montes Claros, é visível a importância da música sertaneja, com duas rádios FM
dedicadas ao gênero, um mercado paralelo expressivo de cassetes sertanejos, um grande
número de shows com duplas de sucesso. Mais que isto, a moda-de-viola faz parte
importante de sua tradição musical regional. Me propuz então a identificar, descrever,
e analisar etnomusicologicamente o mundo da música sertaneja em Uberlândia7. Numa fase exploratória e descritiva foram
conduzidas entrevistas com entusiastas e especialistas do gênero e feita uma observação
da programação de rádios comerciais tanto AM quanto FM. Após, foi feita uma seleção,
transcrição e análise de um repertório representativo da música sertaneja para
Uberlandenses. Este material foi analisado em termos de forma, contorno melódico, timbre
vocal, prosódia, letra, textura e instrumentação.8
Paralelamente foram feitas cerca de 100
entrevistas com fãs de música sertaneja de idade e sexo variado no intuito de se
identificar quais os parâmetros musicais valorizados pelo público constituinte de
música sertaneja em Uberlândia.9
Deste ponto começam a surgir elementos que modificaram o rumo da pesquisa. O que torna a
música sertaneja de boa qualidade para seus aficionados não são melodia, harmonia,
rítmo ou forma, categorias a que me detive até então, mas, principalmente, o estilo
vocal dos cantores no que chamam de "voz", além da relação letra-música.
Usa-se o termo "ter voz" para
qualificar, principalmente pela negativa as vozes que não devem ser "gritadas"
ou "graves". Daí aparecem dois pares para classificação por contraste:
gritada x suave e grave x agudo. O interessante é que a preferência é pela voz agudae
suave, o que exige um controle vocal grande por parte dos cantores.
Na dupla as vozes devem combinar,
mesclando bem o agudo com o grave, isto é, as vozes devem estar bem "casadas".
Tanto as vozes como as duplas devem ter uma afinidade muito grande, tanto que muitas delas
são compostas por parentes próximos.10
Continuando a pesquisa, comparamos
exemplos das três fases de música sertaneja aos aspectos do método de classificaçao
vocal desenvolvido por Alan Lomax (1968), o Cantometrics, que nos pareceram mais
pertinentes com o estilo vocal sertanejo. Dos 15 parâmetros analisados 8 apresentaram o
mesmo nível nas três fases, o que sugere uma unidade estilística na música sertaneja
em termos da categoria estilo vocal, seja ela raiz, de transição ou romântica11. O gênero apresenta portanto
uma coerência interna em termos de parâmetros para avaliação de qualidade. Podem ter
qualidade tanto Tonico e Tinoco ou Pena Branca e Xavantinho quanto Chitãozinho e Xororó
ou Leandro e Leonardo, pela habilidade que demonstram em lidar com suas vozes dentro de um
estilo específico.
Além da "voz" outro elemento
bastante enfatizado pelos Uberlandenses fãs de música sertaneja é a categoria
"letra". As letras das canções devem "ter uma estória", "falar
de amor e paixão" e de "natureza". Ela é importante por remeter ao que
chamam de "cultura", ou falar de coisas identificáveis com o cotidiano das
pessoas. "Muitas vezes", diz um dos fãs entrevistados, "acontecem coisas
no dia e quando você liga o rádio a música parece que foi feita prá você, é
incrível". Esta preocupação com o relator um acontecimento aparece seja nas
canções raiz que tratam de registros épicos de figuras arquetípicas como o boi, o
vaqueiro, o sertanejo, a mula, etc., seja nas canções românticas que contam histórias
muitas vezes autobiográficas de situações do cotidiano urbano. Como diz Simon Frith a
música pop funciona como uma peça teatral, as letras atuando como fala, produzindo
sentido não só no plano semântico, mas também como "estruturas de som que são
sinais diretos de emoção e marca de caráter" (FRITH 1988, p.120).
Fundamental nas letras sertanejas é a
predominância do narrativo, da repetição, do esquematismo, seja no padrão épico das
músicas sertanejas raiz, seja nas fórmulas melodramáticas da música sertaneja
romântica. Este convencionalismo permite, como comenta Jesus Martin Barbero (1983), a
constituição da memória do grupo e a articulação com os arquétipos e processos de
identificação (1983: 64 .)
A música sertaneja ao privilegiar
parâmetros sonoros próprios da fala, isto é o timbre e a própria dinâmica da
narrativa, se coloca à margem do que é considerado música na cultura ocidental letrada.
Nesta última, foram a altura e duração os parâmetros que se firmaram como essenciais
para a conceituação de música versus ruído.12
Se no seu processo de fabricação a
cultura de massa contesta a sacralização da arte, fazendo com que seus primeiros
críticos a vissem somente como o resultado do processo de industrialização (ref. Adorno
e Horkheimer), estes resultados etnomusicológicos referentes à música sertaneja,
primeira manifestação da indústria cultural consolidade no Brasil, sugerem uma outra
concepção de música em termos de elementos geradores de sentido.
O aprofundamento da pesquisa além da
primeira coleta de dados para descrição estilística indicam que o que inicialmente
parecia importante para caracterizar a música sertaneja, e que varia mais ao longo de sua
trajetória dos anos 30 aos 90 -- a incorporação crescente de instrumentos e rítmos
cada vez internacionalizados -- não são elementos definidores para seu público
constituinte.13 Ao considerar
este gênero, a partir da rede de significados que se forma com a sua utilização,
podemos perceber a música popular de uma maneira bem diferente das avaliações feitas
muitas delas pela perspectiva de avaliação da música erudita. 14
Não é que a configuração sonora
sertaneja conteste a posição de prestígio da música "clássica", mas mantém
com muita firmeza sua posição de identidade e opção estética.15 Nas posturas de músicos sertanejos que tem
se apresentado regularmente em Uberlândia, não se percebe uma concepção do gênero
como "artístico". Pena Branca e Xavantinho, uma dupla "raiz" da
região se colocam com cultores do folclore mineiro, se relacionando com o público do
Congresso Regional da SBPC, num dos campi da UFU, de uma forma bastante intimista,
identificando pessoas, inclusive familiares presentes na platéia. Leandro e Leonardo se
colocam como artistas modernos, abrindo seu show, durante uma exposição agro-pecuária,
com um vídeo promocional em espanhol, enfatizando as campanhas publicitárias em que
tomaram parte e apresentando uma imagem ao mesmo tempo rústica e moderna (cenas num trem
de ferro com os dois e num restaurante, Leandro fazendo o papel de "latin
lover"). Estabelecem uma relação com a platéia comentando da cumplicidade do
público de Uberlândia com seu sucesso desde 1989, quando tinham começado. Pena Branca e
Xavantinho apontam para a cultura tradicional e regional, enquanto Leandro e Leonardo se
inserem numa cultura moderna e industrial.
Estes campos de concorrência no mercado
simbólico tem sido analisados principalmente na sociologia, a partir dos estudos de
Pierre Bourdieu (1984) que, na França os observa na contraposição das esferas da alta
cultura ou cultura ilustrada e da indústria cultural. No Brasil acrescenta-se a estas o
campo simbólico "rústico", do artesanato, do folclore.16
Para Bourdieu, enquanto na estética
erudita a arte faz referência a ela mesma, na estética popular a arte faz referência à
vida cotidiana. Na última a arte imita a vida, na primeira a arte imita a arte (BORDIEU
1984, p. 6).17
É esta a postura de Mário de Andrade,
que no Banquete, comenta sobre a universalidade do que chama "comoção
estética", ou capacidade de sentirmos o belo. As obras de arte teriam um valor
estético, intrínseco, fatal, fisiológico e um valor sentimental, individual e de acordo
com a biografias dos indivíduos. Ao homem comum interessaria o conteúdo decisório da
verdade moral e mental, enquanto ao erudito interessaria a forma independentemente de
utilidade. Na realidade Mário questiona se esta atitude "individualista" não
seria uma "deformação errônea da funcionalidade da obra de arte", que na sua
visão deve ter uma função crítica (ANDRADE 1989: 88-93).
Sabemos que Mário, nas suas
colocações descritivas das chamadas características da música brasileira, no Ensaio,
analisa um grupo de cantos folclóricos do ponto de vista culto, isto é, identifica
escalas, rítmos, forma; neste caso Mário está tratando de particulares culturais. É
quando está argumentando prescritivamente que Mário coloca alguns de seus
"insights" mais instigantes, observações que tratam de alguns aspectos
universais em relação à música, entre eles a questão, comentada acima, da
"comoção estética ". Quer dizer, Mário de Andrade descritivo não consegue
transcender o seu "habitus" culto. Somente quando passa para o plano filosófico
é que lança ideias que, desenvolvidas, contribuem para a teorização de uma estética
da música no Brasil.
Outras categorias andradianas úteis,
especialmente no caso da música sertaneja, seriam sua concepção de beleza, arte e
técnica como aparecem nos textos "Distanciamentos e Aproximações", escrito em
1942 para o jornal "Estado" e "O Artista e o Artesão", palestra de
inauguração de seu curso de filosofia e história da arte, na hoje Escola de Música da
UFRJ, de 1938. No entender de Mário arte tem a ver com ética, devendo ser essencialmente
"interessada" e moralmente comprometida. A música sertaneja estaria ligada
portanto à arte popular, por seu conteúdo comprometido com os arquétipos relacionados
com a memória longa e expressos nas letras que tratam da sobrevivência humana, seja nas
letras "raíz" que tratam sociabilidade rural e coletiva, seja nas letras
"românticas" que tratam da sociabilidade urbana e individualista.
Já a categoria "beleza", para
Mário, seria "moral, psíquica e fisiologicamente independente, teria a ver com
estética, seria "desinteressada". A beleza seria uma consequência do que chama
de "técnica", compreendida em 3 aspectos ou níveis: (1) o artesanato ou
habilidade de lidar com o material sonoro, (2) a virtuosidade técnica ou domínio do
repertório tradicional de soluções criativas e (3), a técnica propriamente dita, ou o
estilo individual de cada artista. Este elemento estético apareceria na música sertaneja
pela habilidade em lidar com a voz, unidade estilística das duplas seja tradicionais ou
modernas, e pelos critérios de avaliação qualitativa de seu público.
Concluindo, estamos sugerindo que a
música sertaneja tem uma estética, no sentido de que tem padrões próprios - a ênfase
no cotidiano das letras e o estilo vocal específico - que se constituem a chave para o
estabelecimento de critérios de excelência musical.
Do Equilíbrio entre a aproximação com
o social pelo conteúdo e o distanciamento estético pela preocupação técnica é que
surge uma concepção idealista de arte cuja "'unica finalidade legítima" seria
a obra de arte, enquanto esta representa um assunto humano, transposto pela beleza numa
aspiração a uma vida melhor".
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1 - A
maioria dos estudos, em número bastante reduzido por sinal, que tratam da música
sertaneja interpretam seu significado do ponto de vista da sua produção, seja
enfocando-a pelos seus aspectos industriais em contraposição às suas origens
artesanais, como em CALDAS 1977 e 1987, FERRETE 1985, MARTINS 1974, TINHORÃO 1986, ou por
ângulos específicos, tais como identidade de migrantes (REILY 1992) e a expressividade
caipira de Vieira e Vieirinha (BERNADELI 1992). volta
2 - Região compreende o interior de
S.P., norte do Paraná, partes de MG, Goiás e Mato Grosso, mais ou menos o que Luiz
Heitor chamou de área de moda-de-viola, no Grove 5. volta
3 - Edmar Ferreti, comunicação
pessoal. Sobre Cornélio Pires e a construção da figura do caipira ver HONÓRIO FILHO
1992. volta
4 - As mudanças de estilo e prestígio
crescente atribuídos à música sertaneja reflete tanto os sentimentos pessoais em
relação à vida e às biografias de seus constituintes, como ilustra o impacto de
mudanças complexas do Brasil do século XX: migração interna, urbanização,
industrialização, e modernização dos meios e comunicação e transporte. Minha
hipótese é de que a Música Sertaneja tem sido usada principalmente por migrantes como
um meio para facilitar a absorção de novos valores culturais -- ela se torna mediadora
da adaptação de pessoas originárias da zona rural na sociedade urbana (vide CARVALHO
1993).volta
5 - De certa maneira, a música
sertaneja romântica aproxima-se da estética da música de tradição erudita ocidental
no tocante à melodia, que privilegia o parâmetro sonoro essencialmente musical - a
altura, nas suas canções sentimentais e de contorno melódico amplo e ondulado.
O aparecimento do conceito de estética no século XVIII coincide com a culuminação do
processo de racionalização da altura e duração na música, com o equilíbrio da
tonalidade, exemplificado pela forma sonata em Mozart, com o domínio da duração pela
quadradura métrica. Tendo o domínio técnico das tensões e repousos da tonalidade foi
possível passar da dramaticidade barroca para um lirismo sentimental tão próprio da
sensibilidade burgueza, classe social emergente na época.volta
6 - Apesar do grande prestígio popular
que alcançou nos anos 80 (CARVALHO 1991), a música sertaneja tem um status muito
ambíguo na "economia de bens simbólicos", seja na sua versão "raiz"
quando é considerada uma deturpação dos gêneros folclóricos originais que a formaram,
seja na sua versão "romântica" quando é considerada "brega" (vide
MARTINS 1990 e ARAUJO 1988). Esta posição aparece inclusive entre os aficionados do
gênero, os jovens preferindo as músicas de roupagem "modernas", discriminando
as "caipiras" e os mais velhos as músicas de "raiz", mais "
autênticas", lamentando a predominância do "breganejo" atual. Na minha
opinião, esta ambiguidade se deve à hegemonia dos parâmetros de avaliação estética
da música no Brasil, informados pelos ideais de beleza da música de tradição erudita
européia.volta
7 - Projeto financiado pelo CNPq,
intitulado a ETNOMUSICOLOGIA DA ESTÉTICA MUSICAL BRASILEIRA URBANA - Música Sertaneja.volta
8 - Pesquisa desenvolvida com a
colaboração dos alunos do Curso de Especialização "Métodos e Técnicas de
Pesquisa em Música" na disciplina Etnomusicologia, UFU, 1992/1993. Dentre outras
foram analisadas uma composição de Goiá e Biá ("Saudade de Minha Terra")
considerada "de raiz", em contraste com uma canção de transição
("Fuscão Preto", de Atílio Versutti e Jeca Mineiro) e uma
"romântica" ("É o amor" de Zezé de Camargo). Este estudo confirmou
em linhas gerais os resultados obtidos em Montes Claros.volta
9 - Trabalho desenvolvido por Peter
Botelho (1993).volta
10 - O trabalho de duplas é portanto
coerente com o modelo de sociabilidade comunitário, de onde muitas delas se originam, o
meio rural.volta
11 - Os parâmetros selecionados
foram: Amálgama tonal do grupo vocal, Organização social do grupo vocal, Acentuação,
Volume, Tessitura vocal, Guturalidade, Tensão (impedância), Nasalidade, Ornamentação,
Golpe de glote, Trêmolo, Glissando, Melisma, Pronúncia e Rubato. Pesquisa conduzida pela
aluna Adriana Giovanelli (1993).volta
12 - Na cultura ocidental, o timbre,
secundado pela intensidade são característicos da linguagem verbal, enquanto a altura e
duração se tornam essenciais para a estruturação de uma linguagem musical. (SCHURMANN
1989, p. 40 - 41). Na fala, o timbre é o que caracteriza, que identifica foneticamente
quem está falando enquanto a intensidade qualifica a comunicação, dando-lhe estilo
próprio pela prosódia. Uma definição de música teria relação com sons de altura e
duração determinada, relacionados de forma coerente, harmoniosa e agradável entre si,
mesmo que com o passar do tempo tenhamos ampliado o repertório de sons considerados
"consonantes" agradáveis, belos. Neste sentido, Jacques Chailley apud Wisnik,
comenta como a música do Ocidente se desenvolveu ao longo da série harmônica, aceitando
gradualmente como consonantes o uníssono (do canto chão), a oitava, as quintas e suas
inversões, as quartas, as terças (compondo o acorde perfeito já na Renascença), as
sétimas (sec.XVII e XVIII), nonas (com Wagner e Debussy) até a dissipação da
oposição entre consonância e dissonância na música contemporânea microtonal.
(WISNICK 1989, p. 107).volta
13 - Observação confirmada por Suzel
Ana Reily em pesquisa etnográfica na grande São Paulo, onde entrou em contato com cerca
de 100 músicos amadores e semi-profissionais em São Bernardo do Campo (REILY 1992).volta
14 - Pelos estudos anteriores da
música sertaneja, esta seria avaliada como uma deturpação do estilo caipira original
pelas novas formas de interpretação musical (MARTINS 1990) ou mesmo fruto de um
"sincretismo estapafúrdio" (DUPRAT, 1992), pela crescente incorporação de
rítmos.volta
15 - Tentativas de conquistar um
público de classe média urbana pela aproximação com a estética artística nos anos 70
não deram certo. Não "emplacaram" nem os arranjos com novo tratamento
harmônico, melódico e temático, com letras de construção poética mais
"elaboradas" e engajamento político sutil, no estilo de "Disparada"
de Théo de Barros e Geraldo Vandré, incentivadas no Festival da Viola promovido pela TV
Tupi de São Paulo, com a participação de Júlio Medaglia (SOUZA 1974:44), nem a
concepção "Nhô Look" proposta por Rogério Duprat para a FENIT de 1971, como
"mediação", a criação de um tipo de música capaz de ser aceito tanto por
seu público tradicional como pelo de MPB (SOUZA, idem e também CALDAS 1977). Mediação
consegue Sérgio Reis, com uma imagem de nostalgia do campo, modernizando seletivamente o
modelo caipira (português sem regionalismos e "roupagem" nova na
instrumentação mas não na concepção harmônico-rítmica). Quer dizer, modernizar
naquilo que sugere o "atraso" do caipira (sua maneira de falar e forma artesanal
de produção) mas manter a maneira de ver e sentir o mundo e as relações sociais.volta
16 - modelo ampliado de Bourdieu
sobre o campo de concorrência no mercado simbólico entre a cultura letrada e artesanato
de luxo, sustentadas pelo estado e escola e a indústria cultural é desenvolvido no
Brasil inicialmente por Sérgio Miceli num estudo de programas de TV e, recentemente, por
João Marcos Além e José Roberto Zan em relação ao universo cultural sertanejo e à
produção da música sertaneja (MICELI 1982, ALEM 1994, ZAN 1994). No Brasil a cultura
letrada se une à cultura rústica para se opor à cultura "comercial". A
relação música erudita e música folclórica versus música "industrializada"
é discutida em CARVALHO 1994.volta
17 - Segundo o autor a estética
popular é o oposto da estética Kantiana -- baseada no distanciamento deliberado das
necessidades do mundo natural e social; a apreciação popular sempre tem uma base ética,
seus julgamentos se referem às normas de moralidade ou "agradabilidade"
(BOURDIEU 1984 p.5).volta