Representação Musical como um Processo de
Co-determinação
Edson S. Zampronha
Apresenta-se, neste trabalho, a
articulação entre discurso musical e discurso sobre música no ambiente da escritura e
representação musical. Para tanto esta questão será apresentada no seu contexto geral,
no contexto musical e no contexto especifico da escritura e representação. Segue-se
então uma hipótese e uma conclusão que lhe é decorrente. A hipótese aqui apresentada
é a de que a relação entre escritura e representação é uma relação co-determinada.
1. O Contexto Geral
O contexto geral que discute
articulação entre discurso musical e discurso sobre música é, na nomenclatura de Paul
Ricoeur (Dosse, 1993), a discussão sobre a articulação entre teorias do signo e teorias
do sentido. As teorias do signo lidam com a mediação que há num processo de
comunicação, que é o que ocorre por exemplo num discurso sobre música que interpola a
música propriamente dita e sua percepção fenomênica. Neste sentido o discurso sobre
música funciona como um signo da música, um representamem, algo que está no lugar de
algo. As teorias do sentido, por sua vez, não lidam com esta mediação mas com uma
ligação direta, um transpassar do objeto propriamente dito através das
representações, isto é, mesmo que se tenha a mediação de um signo, algo passa
através dele, propiciando uma ligação direta, um elo natural. Aqui, então, não se tem
algo que está no lugar de algo, mas algo que transpassa, que atravessa algo, e chega ao
receptor. É nesse sentido que geralmente é entendido o discurso musical, como se falasse
por si mesmo, sem mediação.
Estas questões são de fato muito
desafiadoras. São também muito antigas. Tome-se por exemplo o Crátilo de Platão
(427-347 a.C.) e lá encontramos este debate. Neste diálogo Sócrates conversa primeiro
com Hermógenes e depois com Crátilo. Hermógenes (que representa as teorias do signo)
diz que a ligação entre as palavras e as coisas é de todo arbitrária, e Sócrates
responde que isto não pode estar correto pois há algo que une as palavras com as coisas.
Esta ligação se dá através de uma reprodução da estrutura da coisa que se quer dizer
nas palavras. Crátilo, por sua vez (representa as teorias do sentido), diz que há uma
identificação total entre as palavras e as coisas, que uma palavra reproduz o que ela
quer dizer integralmente, como se ouvir uma palavra fosse vivenciar o que ela quer dizer
diretamente. Ora, Sócrates responde dizendo que isso também não é possível. Se uma
palavra reproduzisse integralmente uma coisa ela não seria uma reprodução mas uma
duplicação. Platão termina este diálogo sem chegar a uma conclusão em favor de uma
das posições. A idéia de Crátilo, de algo que transpassa o signo, está ainda melhor
representada no seu diálogo Ion (Platão, 427-347 a.C.), onde Ion é um rapsodo que se
empolga muito quando canta Homero. Sócrates diz que o que ele tem de fato é
inspiração, e que inspiração é fruto de uma cadeia de ligações que começa nos
deuses e termina no público, da mesma forma como um imã que mantém ligada uma cadeia de
metais que podem ter formas diferentes, mas que ficam unidos graças à energia magnética
que os transpassa. Enfim, as teorias do signo trabalham a mediação, em geral tida como
arbitrária, e as teorias do sentido trabalham a ligação direta ou o transpassar do
sentido da coisa, sendo a ligação então necessária. Paul Ricoeur afirma que a
história do pensamento é uma oscilação entre estas duas tendências.
2. O Contexto Musical
Na musicologia do século XX este
problema está de todo presente. A discussão acima aparece agora como discussão entre
análise musical e história da música. Mas antes vamos observar só a análise. Esta
pode se subdividir em análise estrutural (também chamada formalista) e análise
fenomenológica. No que se refere à análise estrutural, esta diz respeito a
"qualquer tipo de análise que envolve a codificação da música em símbolos e a
dedução da estrutura musical a partir das configurações que estes símbolos
formam" (Cook, 1987: 116). Procura, então, um modelo que identifique os elementos
internos à obra e sistematize suas relações internas. Deste modo pertence às teorias
do signo. Já a análise fenomenológica se refere "ao estudo das qualidades
essenciais da experiência humana. Estudar uma experiência fenomenologicamente significa
ganhar uma consciência imediata dessa experiência através da exclusão de tudo aquilo
que não é essencial a ela" (Cook, 1987: 67). Essa análise afirma que o todo
precede e determina as partes, e que esse todo é irracional, não podendo ser explicado
através da análise. Daí que seccionar a obra e procurar as suas relações não leva à
sua compreensão. O propósito da análise fenomenológica é usar-se das obras musicais
"como um meio de descobrir as propriedades gerais da experiência musical per
si." (Cook, 1987: 69). Desta forma, então, associa-se às teorias do sentido.
Vejamos agora o debate entre análise
musical e história da música. No que se refere à análise, tanto a estruturalista
quanto a fenomenológica desconsideram o contexto em que a música ocorre, isto é, são
sincrônicas, e vêem a obra isoladamente, como um sistema fechado. A história da música
se opõe a isto por adotar uma visão diacrônica e contextualizada da música. Conforme
Leo Treitler (1982), o que a história da música mostra é que as diferentes épocas
leram as músicas de formas diferentes, conforme seus contextos específicos. Bent (1980a)
mostra como diferentes métodos analíticos surgiram no correr da história no sentido de
tirar da obra aquilo que estas diferentes épocas procuravam encontrar nelas, conforme
seus interesse específicos. Fundamentalmente a forma como alguém de trezentos anos
atrás ouvia uma obra "X" não é a mesma como alguém de hoje ouve esta mesma
obra. Barbera (1991) mostra de forma documentada, através do estudo dos manuscritos da
Divisão do Canon de Euclides, que mesmo as verdades empíricas, sensoriais, são
contextualizadas, diferindo de época para época. Assim, análise estrutural e
fenomenológica também diferem historicamente. Portanto as análises tendem às teorias
do signo e a história tende às teorias do sentido.1
3. O Contexto da Escritura e Representação Musical
No que se refere à escritura musical,
esta pode ser prescritiva ou descritiva (Seeger, 1977). As prescritivas (que pertencem às
teorias do signo) utilizam-se de um sistema de signos para representar os gestos que o
intérprete deve realizar de modo a que se obtenha um determinado resultado sonoro. A
relação entre a representação mental do compositor e a escrita musical é indireta,
mediatizada. São exemplos: as tablaturas para alaúde e as composições para piano
preparado de J. Cage entre outros (a grafia não corresponde ao resultado sonoro, mas
apenas ao gesto que o pianista deve realizar). Outro exemplo, ainda, é a neo-complexidade
de B. Ferneyhough que, de modo diferente, utiliza-se conscientemente da partitura como uma
prescrição intransponível, onde a própria impossibilidade de sua execução é
geradora da sua interpretação.
De outro lado tem-se as escrituras
descritivas, que procuram justamente descrever a própria representação musical que o
compositor tem em mente. Não escrevem o gestual a ser realizado, mas o próprio movimento
dos sons, o fenômeno sonoro, independente de como sejam tocados. São exemplos: os
neumas, as partituras grafistas (como Volumina, de Ligeti e Tanka II, de
H.J.Koellreutter), partituras roteiro (como Aus Den Sieben Tagen, de Stockhausen) entre
outras.
A notação prescritiva, por intermediar
a representação mental do compositor e o som com a escrita do gesto, alia-se às teorias
do signo. Já a descritiva, por procurar escrever o próprio movimento sonoro desejado,
alia-se às teorias do sentido. No entanto o que costuma ocorrer nos diferentes sistemas
de notação musical é a presença simultânea dos dois tipos, o que mostra que apesar de
distintos eles podem coexistir, como acontece na notação tradicional.
Olhando-se mais de longe, observa-se que
independente de se escrever os gestos que produzem os sons (prescrição) ou o movimento
dos sons propriamente dito (descrição), ambas se utilizam de um código gráfico que se
manifesta sobre o papel (ou outro suporte). Surgem, aí, duas posições distintas no que
diz respeito à relação entre as representações mentais e o código de escrita: ou
essa relação é de dependência ou de independência. Caso visto como uma relação de
independência, o código de escrita é apenas um código secundário que traduz as
representações do compositor em um conjunto de signos gráficos que se associam conforme
um certo conjunto de regras. Desta maneira, alguém que conheça o código é capaz de
restituir a informação original do compositor. A função do código é apenas de
registro e comunicação (Bent, 1980b) onde o melhor código é aquele que mais se
aproxima da neutralidade, e o pior e que mais distorce a informação original. Daí que o
código é apenas um meio que influencia a mensagem (pois pode distorcê-la), mas não um
princípio de criatividade (Boulez, 1985: 117).
A outra posição (relação
necessária) afirma que considerar-se a escrita apenas como uma lente através da qual o
compositor expressa suas intenções é vê-la de modo ingênuo (Griffiths, 1986: 5), já
que é o próprio código que possibilita que as representações do compositor ocorram.
Weber (1911) afirma que foi a invenção da notação musical que criou as condições
específicas do desenvolvimento da música ocidental. Daí que as representações do
compositor são determinadas pela escrita. E mais, como diz Derrida (1967), as
representações mentais são elas mesmas uma forma de escrita.
No primeiro caso, então, a
representação mental do compositor independe da escrita, e no segundo, essas
representações só podem existir a partir dela pois fundamentalmente são elas mesmas
uma forma de escrita na mente do compositor. Mas, levadas ao extremo, essas duas
posições parecem insatisfatórias pois a história da música mostra que em certos
momentos aparentemente o desenvolvimento do código possibilita o desenvolvimento musical
e, em outros, certas necessidades composicionais aparentemente produzem modificações no
código. Portanto, parece incorreto dizer-se que as representações sejam totalmente
independentes ou totalmente dependentes da escrita. A concepção de dois universos
distintos que se interseccionam também não parece possível pois seria supor que há a
possibilidade de, em certos momentos, haver uma total dependência ou independência entre
eles, que é justamente o que não pode ser.
4. A Hipótese da Co-determinação
Diante deste quadro, a hipótese que
assumo é a de que representação e escritura são co-determinadas, e esta
co-determinação é decorrente de um processo de reflexão estética. Vejamos.
Quando um novo pensamento estético
surge, ele provoca em maior ou menor grau uma perturbação ao paradigma vigente. Esta
interação pode ser negativa ou positiva. Negativa quando ocorre destruição total, seja
do paradigma ou seja da inovação, e positiva quando ocorre interação que promove uma
transformação em maior ou menor grau em ambos, e eventual substituição de um pelo
outro. No entanto essa transformação não é uma evolução, isto é, as
transformações não produzem um trabalho de arte que seja mais válido que os
anteriores, mas apenas diferente, apresentando um novo modo de ver/ouvir. O
desequilíbrio, a busca constante por novos modos de ver/ouvir, torna-se a própria meta
do trabalho artístico. Mas para que isto seja feito é necessário que o artista se
distancie do seu próprio paradigma para que possa observá-lo. Ora, esse distanciamento
é como um olhar-se a si mesmo, como um olhar-se num espelho, e o que se observa num
espelho é uma imagem, uma representação. Portanto só é possível olhar-se para si
próprio através de representações onde o modo de representar determina o modo de ver
estético e o modo de ver estético determina o modo de representação simultaneamente.
Daí dizer-se que são co-determinados. Daí também dizer-se que é a partir do processo
de reflexão estética, da poiesis (fazer o que não é vir a ser, processo este que é a
essência da criação artística), que surge esta polaridade entre representação mental
e escritura. Acrescente-se, ainda, que é por causa da diferença dos suportes (papel e
mente, por exemplo), e não de suas naturezas, que surge uma não harmonia entre esses
dois meios, o que gera uma interação dinâmica, instável e imprevisível entre eles.2
5. Conclusões Decorrentes
Para concluir, vejamos agora algumas
conseqüências desta hipótese:
1) ao se observar a história da
notação musical ocidental, observa-se que alterações da escritura musical e
alterações composicionais sempre ocorrem juntas. Quem surgiu primeiro, uma necessidade
de expressão que requer uma escrita especial ou uma alteração na escritura que
possibilita uma alteração estética? Conforme nossa hipótese, nenhum dos dois: essa
relação é co-determinada, não havendo primeiro ou segundo;
2) amplia-se necessariamente a
definição tradicional de escritura musical que passa a ser qualquer coisa que, de
qualquer que seja a maneira e em qualquer que seja o sentido, representa outra. Assim,
diversos podem ser os ambientes de escritura (como argila, papel, rolo de pianola, fita
magnética, tela de computador, memória eletrônica e a própria mente). Diversos também
podem ser os componentes do sistema de escritura, e diversos podem ser os modos de
estruturação destes componentes (notação neumática, tradicional, grafista,
proporcional entre outras), e
3) se para se gerar um novo discurso
estético é necessário criar-se este distanciamento do paradigma, e se este
distanciamento gera uma co-determinação entre representação e escrita, então toda
geração de um discurso musical novo vem acompanhado de alguma maneira e em algum sentido
de uma alteração no seu ambiente de escrita (no sentido ampliado exposto acima).
A co-determinação surge então em meio
à tradição de uma escritura como código secundário das representações (teorias do
signo) e das representações como uma forma de escritura (teorias do sentido). Traz em si
uma série de transformações que se refletem e interagem diretamente com as questões
estético-composicionais que hoje se apresentam. Enfim, vê-se que a reflexão é o
próprio processo através do qual a música pode dar os passos que criam o próprio
caminho sobre o qual caminha.
Bibliografia básica:
BARBERA, André (1991). The
Euclidean Division of the Canon: Greek and Latin Sources. Lincoln and London:
University of Nebraska Press.
BENT, Ian (1980a). Analysis. In: The
New Grove Dictionary of Musica and Musicians. London: Macmillan, v.1.
BENT, Ian (et alii)
(1980b). Notation. In: The New Grove Dictionary of Musica and Musicians. London:
Macmillan, v.16. p.333-420.
BOULEZ, Pierre (1985) [1992]. A
Música Hoje 2. São Paulo: Perspectiva (Debates, 217).
COOK, Nicholas (1987). A Guide
to Musical Analysis. London: J.M.Dent & Sons.
DERRIDA, Jacques (1967) [1971]. A
Escritura e a Diferença. São Paulo: Perspectiva (Debates, 49).
DOSSE, François (1993) . História
do Estruturalismo. São Paulo: Ensaio, 2v.
GRIFFITHS, Paul (1986).
Sound-Code-Image. In: Eye Music: The Graphic Art of New Musical Notation. London:
Arts Council, p.5-11.
PLATÃO (427-347 a.C.) [1966]. Obras
Completas. Madrid: Aguilar.
SEEGER, Charles (1977). Studies
in Musicology: 1935-1975. Berkeley: University of California.
TREITLER, Leo (1982). Structural
and Critical Analysis. In: D.K.HOLOMAN & C.V.Palisca, Musicology in the 1980s. New
York: Da Capo Press.
WEBER, Max (1911) [1995]. Os
Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música. São
Nota
1 - Aqui nos referimos
especificamente às análises anteriores a 1980, isto é, excluimos as análises
pós-estruturalistas que, como ocorre no texto de Barbera (1991), transcendem estas
limitações.volta
2 - Nos casos em que essa
co-determinação é menos inarmônica, pode-se ter a impressão de que ela não exista,
que é o que pode acontecer nas improvisações num dado instrumento. Ora, mesmo nas
improvisações vocais ou improvisações sobre diferentes instrumentos, tal como num
piano, o mesmo processo ocorre. O teclado do piano, por exemplo, é uma forma de
representação visual dos sons, e co-determina a improvisação. Thelonious Monk, no
Jazz, obtém alterações no seu resultado musical através da alteração da posição da
mão. Esta alteração gera um outro tipo de interação com o teclado pois leva a
produzir outros movimentos melódicos mais adaptados a esta nova posição de mão que à
posição mais convencional.volta