ANPPOM
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA

MUSICOLOGIA
Comunicações, Painel e Relatos de Pesquisa


Três Compositores Brasileiros nos Anos 70 e 80: Rodolfo Caesar, Gilberto Mendes e Almeida Prado (relato).
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Carole Gubernikoff

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Em 1990, o crítico e pensador Antonio Cândido publicou um artigo, Radicalismos, que se inicia pela seguinte frase:

O meu intuito é mostrar a ocorrência de idéias radicais no Brasil e tentar caracterizá-las por meio de alguns exemplos, tendo como ponto de referência três autores significativos. Para isso é bom começar mencionando o seu oposto, o pensamento conservador, pois à medida que o tempo corre, verifica-se que um dos traços fundamentais da mentalidade e do comportamento político no Brasil é a persistência das posições conservadoras, formando uma barreira quase intransponível 2

Da mesma maneira, a apresentação de três compositores "radicais", de intensa atuação nos anos 70 e 80, tem como objetivo examinar alguns bastiões de resistência ao pensamento musical predominantemente conservador brasileiro. A diversidade de suas opções composicionais e estéticas nos previne também de utilizá-los como paradigmas de posições intransigentes.

Para Antonio Cândido, os autores radicais são importantes de serem estudados porque suas leituras colaboraram, em momentos pontuais da história brasileira, com algumas transformações da realidade social, sem contudo afetar sua constituição mais profunda, que permaneceu conservadora.

Setenta por cento dos compositores brasileiros que responderam a um questionário 3 sobre as tendências da música brasileira nos anos 80, numa pesquisa realizada durante a Bienal de Música Brasileira Contemporânea, em 1989, responderam que este período tinha sido marcado pelo abandono das propostas consideradas estéticamente radicais. Alguns dos entrevistados se identificaram numa fase "pós-moderna" ou eclética, onde haveria uma suspensão de conflitos estilísticos e a adoção de uma espécie de sincretismo de vertentes composicionais que pareciam irreconciliáveis. O termo pós-moderno ganha um caráter de "ocaso" ou "depois" do moderno, sendo moderno aquilo que é radical.

Como muitos "jamais foram modernos" 4, (metade dos 70%, ou seja 35% dos entrevistados), a questão da relevância de fatores que nós chamamos de representação extrínseca 5, tornou-se fundamental tanto para a abordagem do repertório a ser selecionado, como para as metodologias de análise musical da pesquisa. Defendemos a posição na qual é necessário mais do que uma análise musical baseada na interpretação de dados objetivos ou quantitativos extraídos das partituras. Um excessivo rigor, de natureza pretensamente científica, centrado exclusivamente na estrutura formal das obras poderia conduzir a mal entendidos e descrições que não levariam em consideração o universo estético, ou a "poiesis" e a "aestésis 6" envolvidas em cada obra, de cada compositor.

No caso das obras "radicais", principalmente da segunda metade do século vinte, partimos do princípio de que para as novas estéticas era necessária uma "outra fundamentação" que não deve ser confundido com novas metodologias de análise, ou ainda com uma complementariedade entre métodos. Para nós, ela ganhou uma questão filosófica na medida em que questiona e relativiza as diversas abordagens surgidas na análise musical nos últimos anos. Encontramos esta "outra" fundamentação em autores como Nietzsche, Bergson, Bachelard e Deleuze. Entretanto, esta outra fundamentação não é nova, no sentido de novidade, porque remonta às origens da história do pensamento e, neste sentido, é mais radical do que faria supor a racionalidade moderna.

Dentro desta perspectiva, não nos caberia apresentar a análise musical como prova científica. Acreditamos que isto seja tarefa para os estudiosos do cognitivismo, da psicoacústica ou da física acústica. Nos propomos apenas a lançar mão dos instrumentos de observação pertinentes para a tarefa, sem a pretensão de encontrar um modelo que valha para toda e qualquer obra.

Gilles Deleuze, em seu livro O bergsonismo, 7 chama a atenção, logo no primeiro capítulo, para a presença no pensamento do filósofo francês Henry Bergson, da "Intuição como método", descrita por ele como uma apreensão imediata, na duração ("durée"), que se dá entre a percepção e a memória. Nós propomos que nossas abordagens devem partir desta intuição imediata, sem contudo abandonar, para as etapas subsequentes, as metodologias ou mediações consagradas no estudo da teoria e da análise musicais. A intuição imediata age na seleção daquilo que é pertinente para os objetivos do estudioso, frente ao que passa a ser seu objeto de conhecimento. Portanto, na interpretação de Gilles Deleuze, uma das "regras" da intuição como método é "...denunciar os falsos problemas...". Da mesma maneira, aplicar modelos que não são pertinentes às questões envolvidas na composição e na audição de algumas obras do século XX, pode ocasionar falsos problemas e desviar a análise de seus objetivos. Ela deve estar sempre a serviço do aprendizado musical e ser um poderoso instrumento, não da pedagogia da música, mas do perene aprendizado de cada músico, seja ele intérprete, compositor ou teórico.

A partir destas perspectivas e destes cuidados, nos dedicamos ao estudo das obras de Rodolfo Caesar, Gilberto Mendes e Almeida Prado, três compositores de diferentes carateres, estilos e graus de radicalidade.

A música eletroacústica e a obra de Rodolfo Caesar

O aspecto que nós consideramos como a transformação mais radical na percepção musical no século vinte foi a expansão sonora oferecida pelos meios eletroacústicos. Não apenas do ponto de vista do inaudito, do "nunca escutado" - os ruídos e a síntese de toda espécie de espectros - mas também pela descoberta da interioridade temporal do som. Nas palavras de Rodolfo Caesar, isto produziu um transbordamento ou um "derrame dos conceitos" tradicionalmente utilizados para o estudo e análise de elementos relativamentoe fixos como as notas musicais no sistema temperado.

A composição em estúdio produz na escuta uma não linearidade com a origem do som que o torna desvinculado de seu "gesto". Entendemos que esta escuta, que François Bayle chamou de acusmática, problematiza todas as formas de escuta. Ao mesmo tempo que remete ao "futurismo" tecnológico, com seus glissandos infinitos e reverberações artificiais, aponta para uma origem mais primitiva da audição estabelecendo um relação disjuntiva e paradoxal.

Outro aspecto importante é a ausência de notação e de partitura, havendo, quando muito, um guia esquemático reduzido utilizado para orientar as perfomances ou para as música mixtas. É comum, tambem, a impressão e análise de espectogramas, que fotografam a realidade sonoro no tempo contínuo. Como a prática da análise musical tem sido desenvolvida através da relação com a partitura, num descontínuo entre o virtual da notação e a atualização sonora da performance, o fato de a música eletroacústica não ter um partitura problematiza também a função e a atividade da audição na análise musical em geral.

Esta disjunção entre "écriture", entendida como "composição" (por junto) e audição já tinha sido apontada desde o final da década de 40 por Pierre Schaeffer, quando criou a "musique concrète", nos estúdios da Radio e Televisão Francesas e se dedicou ao estudo dos componentes do som em sua relação com a audição. De uma forma geral, os compositores adeptos da 'musique concrète" mantém uma relação profunda com a sensibilidade sonora, sendo que a maioria de suas decisões composicionias se baseiam sobre uma audição empírica, não mediatizadas pelo notação.

Para o estudioso que não é compositor e que se ocupa da análise da música eletro-acústica devem ser levadas em consideração ao menos três etapas de seu trabalho: 1 - reconhecimento e classificação auditiva dos eventos sonoros; 2 - identificação, justaposição e cronometragem; e 3 - conformação global da obra. Estas etapas são, entretanto, difíceis de separar, pois cada uma delas pressupõe a outra, em diferentes níveis, ou extratos, e não indicam uma ordem cronológica de ações. Além destas etapas, que atuam na superfície do fenómeno sonoro, devem ser levadas em consideração os fatores em "profundidade", onde atua a temporalidade vertical. Exemplos desta temporalidade vertical se encontram nas relações entre a a "interioridade" e a "exterioridade" sonora, entre os espectros e a audição e ainda, na exterioridade, pela presença ou não de referências extrínsecas (do tipo "gota d'agua", "ranger de porta", etc..) e de suas funções retóricas.

Rodolfo Caesar 8 é um compositor de formação na "musique concrète". Sua obra é extremamente rica quanta às questões que envolvem o fazer da música eletroacústica no contacto com a matéria sonora através da intermediação das tecnologias elétricas e eletrônicas.

Podemos distinguir duas etapas no desenvolvimento da composição eletroacústica: nos anos 70 a utilização de técnicas analógicas de gravação e montagem, com fita, tesoura e cola, e nos últimos 10 anos as técnicas digitais e os sistemas de composição com auxílio do computador. Esta mudança tem acentuado o caráter ou a estilística do compositor Rodolfo Caesar, na medida em que reconhecemos, já em seu trabalho analógico, um gosto pelas transições ínfimas, pelas passagens imperceptíveis de uma "situação" para outra, e uma grande economia de materias composicionais. Estes dois traços, transições elaboradas e economia de materiais, sem esquecer dos cortes bruscos que irrompem no contínuo sonoro, como uma necessidade interior de criar um novo interesse, constituem o universo estilístico composicional para a avaliação da obra de Rodolfo Caesar,

Estas características estão presentes desde suas primeira obras e podemos mencionar algumas que consideramos significativas: Curare II de 1978, foi realizado a partir de sons de instrumentos como berimbau de boca, pequeno instrumento em metal que se coloca entre os dentes e se percute com os dedos, violão e uma chapa de ferro. Estes instrumentos não são reconhecíveis pela audição, preservando-se principalmente uma oposição entre suas ressonâncias e montagens de ataques; A paisagem, de 1984, aproveita uma gravação muito antiga de uma área de ópera e elabora a idéia de um som comovente que emerge de uma camada de ruídos produzidos pelos sulcos; Introdução à Pedra, de 1989, é o primeiro estudo, da série de três, que compõe uma peça chamada NORFOLK FLINT e composta durante o doutorado na Inglaterra. Ela já se encontra no universo de gravação e elaboração digitais e trabalha com oposições elementares como inspiração/expiração, pulsativo/liso e ataque/ressonância, soando como uma matéria mineral inorgânica viva. Volta Redonda de 1991/93. aprofunda aspectos de técnicas relacionadas com "Composição Auxiliada por Computador" (C.A.C) que, a nosso ver, deverá ter consequências profundas sobre o pensamento musical de uma forma geral, e não apenas no de Rodolfo Caesar. A partir da junção de idéias de categorias diferentes e de significados diferentes da palavra "volta" são amalgamados vários sentidos: Volta Redonda, cidade onde se encontra a maior siderúrgica do Brasil e um dos maiores índices de poluição do país, as voltas de uma esfera de metal sobre uma superfície circular e a forma em espiral da composição. Esta mergulho vertical entre as diferentes camadas da percepção, deriva da busca de integração do compositor com a matéria sonora produzindo uma identidade entre estética e técnica. Para ele, matéria e material não podem ser distinguidos um do outro, pois é da própria matéria que emana, sem mediação, todo o material composicional.

Já na composição tradicional, o material composicional é de natureza diferente da matéria sonora, havendo uma profunda disjunção entre estas duas "etapas" da composição.

A ironia na obra de Gilberto Mendes

A obra de Gilberto Mendes se coloca sob um outro signo, de natureza completamente diferente da de Rodolfo Caesar, com suas problemáticas ontológicas sobre a natureza do som e da percepção.

Gilberto Mendes 9 tem abarcado uma grande variedade de gêneros musicais, desde partituras rigorosamente notadas, até instruções comportamentais para a performance, como no teatro musical. Decidimos nos concentrar nas partituras notadas no intuito de para verificar se era possível extrair uma técnica e uma estética que "unificassem" a trajetória de Gilberto Mendes através da aparente falta de unidade estilística. O signo que atravessa as obras de Gilberto Mendes é muito mais a ironia, uma espécie de afastamento, de ascese em relação ao mundo sonoro, que uma estética particular ou uma tendência.

Em Lógica do Sentido, Gilles Deleuze apresenta uma definição de ironia que pode esclarecer o uso desta palavra.

Aquilo que há de comum a todas as figuras da ironia é que elas fecham a singularidade nos limites do indivíduo ou da pessoa. Também, a ironia não é vagabunda senão na aparência. Mas, sobretudo porquê estas figuras estão ameaçadas por um inimigo íntimo que lhes trabalha por dentro: o fundo indiferenciado, o sem fundo do qual nós já falamos, e que representa o pensamento trágico, o tom trágico, com o qual a ironia entretém as relações mais ambivalentes 10

A economia de materiais, a extrema simplicidade e uma técnica de corte e montagem produzem, quase paradoxalmente, uma obra de extrema complexidade e sofisticação. A ironia age como negação do sem fundo, do "todo" sonoro em nome de um deslizamento pela superfície, de uma ascese do sonoro.

Outro aspecto importante é seu universo pessoal, que permeia toda sua produção. Em sua "auto-biografia", Uma Odisséia Musical , ele se compara a Ulisses, que é o signo do viajante, aquele que desliza na superfície dos mares e escapa ileso das profundidades abissais. O subtítulo do livro, "dos mares do sul à elegância pop/art déco", reforça a idéia de passagem e de transitoriedade. O livro de Gilberto Mendes é uma narrativa das viagens entre estilos, tendências e influências musicais, sob o signo da liberdade criadora e da militância radical, tanto política quanto estética.

Algumas peças de seu repertório exemplificam a variedade de sua produção. Blirium C-9, de 1965, foi composta dentro dos preceitos da "obra aberta", para teclados (percussão ad libitum). A partitura consiste na apresentação dos elementos estruturantes, espécie de "formantes", e de regras de agenciamento que devem ser realizadas pelo intérprete. Motet em re menor ou Beba Coca-Cola, de 1967 para coral SATB e ação teatral, com texto de Decio Pignatari, foi composta à maneira de um moteto isoritmico medieval, sobre um acorde fixo. O poema se reduz às várias ordenações possíveis do 'jingle' comercial da Coca-Cola, reordenando os fonemas até chegar ao ponto culminante final que forma a palavra "Cloaca", sinônomo de esgoto. Gregoriana, (in memorian) para trompa em F, de 1983 e Um estudo? Eisler e Webern caminham nos mares do Sul, para piano solo, de 1989 se inscrevem numa outra fase da produção de Gilberto, onde há uma retomada da escrita composicional tradicional. Em Gregoriana, principalmente, a técnica de pequenas configurações melódico ritmicas justapostas num fluxo contínuo e linear se consolida. Os anos 70 haviam sido de intensa atividade no âmbito das músicas de caráter experimental, havendo pouquíssimas partituras convencionais em seu catálogo. Os "antigos sucessos" de Gilberto Mendes haviam se tornado acessíveis a um maior número de pessoas e foram calorosamente acolhidos pelo público, principalmente Santos Football Music , de 1969, para orquestra e participação da platéia, e Beba Coca-Cola. . Este "hiato" experimental, onde constam várias obras cênicas, precede o que Gilberto Mendes chama de sua terceira fase ou sua "fase atual", que ele descreve como uma "melodia de intervalos". A denominação é curiosa, porque toda melodia, afinal, é feita de intervalos, temperados desde o século XVIII. Mas, o que Gilberto chama de '"música de intervalos", é manifestamente o uso puro e simples dos intervalos, sem contorno direcional ou configuração ritmica. Neste sentido, torna-se um verdadeiro desafio à percepção na medida em que a segmentação do fluxo sonoro torna-se, no mínimo ambigua, quando não impossível. Um estudo? Eisler eWebern caminham nos mares do sul, é um bom exemplo desta técnica composicional, onde são utilizados materiais intervalares dos compositores Webern e Eisler, mas nenhum perfil ou configuração reconhecíveis. Esta extração intervalar pode ser considerada como uma característica geral da obra de Gilberto Mendes e que pode ser encontrada também nas composições de Willy Correa de Oliveira: a utilização de intervalos extraídos de motivos ou de harmonias de outras obras, com a função de referência ou de meta-linguagem. Gilberto Mendes descreveu Um estudo? como passos deixados na areia, índices das passagens dos dois compositores, à maneira de uma reconciliação entre o atonalismo e o neo tonalismo, entre as dissonâncias e as tríades, entre os dois "porta-vozes mais representativos na música germânica de nosso século" 11 . O que nos remete à uma outra característica geral da obra de Gilberto Mendes: a admiração e a ligação emocional com as música de origem germânica, seja na forma de música serial ou tonal, seja na forma de canções, na vertente do cinema americano e dos grandes compositores de 'lieder" populares americanos.

Uma das grandes diferenças que separam a formação do músico no Brasil e nos Estados Unidos se deve às diferentes formações nos conservatórios e nas escolas de música, desde o século XIX. Se nos detivermos na biografia 12 de Charle Ives, um compositor fundador da música norte americana , suas referências ao academicismo e à formação tradicional, para ele insuportáveis, se concentram na Universidade de Yale, onde estudou e onde era transmitida a mais rígida ortodoxia alemã.

No Brasil, conforme o polo de desenvolvimento cultural, as tradições locais são ou de origem francesa ou de origem italiana.

Marlos Nobre, 13 talvez expressando "brasileiramente" esta dicotomia, optou por uma divisão da música contemporânea no século XX entre uma "linha latina" e uma "linha germânica". A germânica, mais preocupada com o desenvolvimento formal e com a funcionalidade e a latina mais preocupada com a sonoridade e com a temporalidade musicais. Sem nos aprofundarmos nesta classificação proposta por Marlos Nobre, mesmo o neo-americanismo de Gilberto Mendes não deixa de ser um desdobramento da música que ele mesmo classificou de germânica, e em seu período mais experimental sua produção encontra mais afinidades com as posições de Maurizio Kagel e de John Cage, que são desterritorializações de diferentes germanicidades nas Américas.14

Não pretendemos dicotomizar estas oposições e muito menos nos congelarmos em fórmulas "de algibeira", mas acreditamos que estas forças de agenciamento estão agindo incessantemente na produção artística e cultural e que uma avaliação estética não pode se pretender neutra, nem encarar seus "objetos" de uma maneira neutra. O próprio Gilberto Mendes se coloca radicalmente contra a idéia de neutralidade, e se posicionou de forma militante tanto na realização de sua obra como em sua vida. Desta maneira, esta reconciliação tonal/atonal, dissonância/consonância, que ele vem buscando desde o final da década dos 70, e que atravessa a década dos 80, não significou abandono de suas posições ideológicas e políticas, e nem uma solução negociada com os que nunca foram modernos. Ao contrário, ele busca a profunda radicalidade de todo o fazer musical, em todas as épocas.

Almeida Prado, a natureza e a religiosidade.

Almeida Prado, também nascido em Santos, em 1943, pertence a um outro quadro de questões e proposições. A sua militância tem sido de caráter religioso desde a primeira obra de seu catálogo, Missa da Paz, de 1965. Outra também é a envergadura e a ambição composicional. Não encontramos nenhuma peça experimental em seu catálogo, suas partituras são sempre vocais e instrumentais, não participou de grupos de compositores, não desenvolve novas tecnologias e procura soluções puramente formais para expressar seu desenvolvimento artístico. Ele mesmo classifica sua trajetória em três etapas: a primeira, nos anos de formação com Camargo Guarnieri, de forte influência nacionalista, a segunda, sob influência dos ensinamentos de Olivier Messiaen e de Nadia Boulanger em Paris, e a terceira, que ele denomina de trans-tonal, onde procura conciliar todas as influências de sua formação, num sincretismo estético. Estas definições poderiam nos levar a constatar que tanto Almeida Prado como Gilberto Mendes estariam se encontrando nas mesmas questões. Entretanto, basta ouvir qualquer de suas obras para observar a grande diferença que existe entre estes dois compositores.

De Almeida Prado vamos mencionar apenas duas obras de um catálogo muito rico.

Cartas Celestes I , de 1974, é a primeira de uma série de peças para piano realizadas através da observação do mapa das constelações do céu do hemisfério sul. Nelas, de uma maneira "aleatória", Almeida Prado encontrou uma espécie de escrita de pontos, linhas e conglomerados sonoro que se transformaram em notação musical. Para ordenar este material, Almeida Prado, que não é adepto da não intencionalidade, ordenou uma série de acordes, cada um "significando" uma estrela, ou ponto, ou constelação. Com este material harmônico construiu um discurso 'descritivo", não faltando aspectos narrativos, como, o anoitacer, a estrela vesper, etc... Do ponto de vista da utilização do piano, Cartas Celestes se inscreve na tradição do grande pianismo, desde Liszt e em seguida Bartok, com notáveis influências da escrita monumental de Olivier Messiaen, principalmente para orgão. De Liszt, sem dúvida, Almeida Prado herdou não apenas a técnica mas a inspiração dos temas "terríveis", sejam eles de caráter demoníaco, como a Valsa Mephisto ou Funerailles, sejam eles místicos, como São Francisco sobre as Ondas ou descritivos, como em Anos de Peregrinação. A idéia das cartas celestes se tornou referência na obra de Almeida Prado, tanto que, em 1982, ele retomou o ciclo, compondo mais uma série que inclui as Cartas Celestes II a VI. Estas últimas já não estão compostas dentro do atonalismo "quase livre", como as primeiras e incorporam uma técnica harmônica que ele denomina de trans-tonal.

A Missa de São Nicolau, de 1986, para orquestra de câmara, coro e solistas, é, talvez, a obra mais significativa do ponto de vista das questões envolvidas em sua concepção. Nela se encontram todas as grandes questões da composição para Almeida Prado. O profundo misticismo da forma sacra, com sua temática religiosa, o domínio da harmonia trans-tonal, o sincretismo das diversas técnicas composicionais de sua formação. O neo-classicismo nacionalista de Camargo Guarnieri, as técnicas aditivas de Olivier Messiaen e a tradição francesa de Nadia Boulanger, aliada aos ritmos dos ritos afro-brasileiros.

Do ponto de vista da harmonia, a preocupação com uma síntese sonora que conduza o pensamento musical coincide com as preocupções do grupo de alunos de Messiaen que são de aproximadamente mesma geração, como Tristan Murail ou ainda Gerard Grisey . Este grupo, insatisfeito com as preocupações da música pós-serialista, fundou uma escola de composição que intitularam de espectral, baseados na vontade de compor a partir do som, ou dos espectros sonoros, principalmente inharmonicos, e de suas transformações. Este grupo utiliza o computador para realizar os cálculos necessários para a síntese sonora que se realizará nos instrumentos convencionais. Sem se colocar as mesmas questões matemáticas e de uma maneira empírica, Almeida Prado também vem se preocupando com uma sonoridade que atravessa o espectro sonora, baseando sua harmonia em longas nota-pedal graves e distribuindo pelo âmbito espacial as alturas que, conforme vão se aproximando dos sons mais agudos, mais microtonais vão se tornando. Resumidamente, uma nuvem super aguda de cluster, sustentada por um baixo fundamental e níveis intermediários de consonâncias.

Este três compositores ilustram bem a grande variedade de questões, estilos, tendências e formações existentes atualmente na produção de música culta brasileira. Um aspecto, entretanto, estes compositores têm em comum: a capacidade de se deixar atravessar e capturar e influenciar pelas forças sonoras, sem as quais a criação é impossível.


Bibliografia citada.

CANDIDO, A. - "Radicalismos", in REVISTA DE ESTUDOS AVANÇADOS 4/8, São Paulo, IEB, USP, 1990

COWELL, H. - Charles Ives and his music, New York, Da Capo, 1983, (1955)

GUBERNIKOFF, C. - "Musica e Representação", in Cadernos de Análise Musical IV, ed. Atravéz, 1991

____________. - Música e representação: das durações aos tempos, tese de Doutorado, ECO, UFRJ. 1993

_________- Sentido e música, dissertação de mestrado, ECO, UFRJ, 1985

DELEUZE, G. - Le Bergsonisme, Paris, PUF, 1966

KOELLREUTTER, H. J. - Terminologia de uma nova estética musical, Porto Alegre, Movimento, 1990.

LATOUR, B - Jamais fomos modernos, Rio de Janeiro, Editora 34, 1994.

MENDES, G. - Uma odisséia musical, São Paulo, EDUSP, 1994.

NOBRE, M. - ."Tendências da criação musical contemporânea", in: Revista da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea nº1, 1994


Nota

1 - Este artigo é parte de uma pesquisa em andamento, parcialmente apoiada pelo Conselho Nacional de Pesquisa, CNPq.volta

2 - CANDIDO, A. - "Radicalismos", in REVISTA DE ESTUDOS AVANÇADOS 4/8, São Paulo, IEB, USP, 1990.volta

3 - Pesquisa "Tendências da música brasileira contemporânea na década de 80, uma perspectiva a partir das bienais de música brasileira contemporânea da Sala Cecilia Meirelles."volta

4 - LATOUR,A - Jamais fomos modernos, Rio de Janeiro, editora 34, 1994. Este livro analisa históricamente as implicações filosóficas e científicas,do conceito de modernidade, desde sua fundação, no século XVII, com Hobbes e Boyle, numa perspectiva antropológica. A tese do livro é que, apesar dos esforços em isolar e em separar de um lado a sociedade e de outro lado a natureza, ou as coisas, nunca foi possível evitar a presença e proliferação dos híbridos. Este livro contradiz a teoria de que a pluralidade seja uma "conquista" da contemporaneidade, mas que estes esforços de purificação, típicos da era moderna, não evitaram a proliferação das misturas. Para a autora deste texto, a expressão musical é impossível sem a multiplicidade e a complexidade, sempre presentes. volta

5 - vide GUBERNIKOFF, C. - "Musica e Representação", in Cadernos de Análise Musical IV, ed. Atravéz, 1991. Nesta tese defendemos a idéia de que existem níveis de representação cada vez mais profundos, nos quais estão "representados" os conteúdos dados pelos sistemas de significação. Neste caso, os chamados níveis puramente formais dão lugar às "formas de conteúdo", como foi analisado por Gilles Deleuze em Milles Plateaux, no capítulo relativo à discussão da dupla articulação da linguagem. volta

6 - Termos utilizados por Nattiez/Molino para designar a ênfase sobre os processos contextualizadores, tanto do compor, como do ouvir, havendo ainda um terceiro nível intermediário chamado de nível imanente, ou neutro, da obra em sí. Para nós é importante ressaltar que também não é possível "purificar" cada um dos termos, pois todos estão presentes em cada uma das abordagens. Entretanto, isto não nos impede de distinguí-los para ver como se processam as causalidades disjuntivas ou diferenciais na passagem de um para o outro.volta

7 - DELEUZE, G. - Le Bergsonisme, Paris, PUF, 1966. volta

8 - Rodolfo Caesar, nascido em 1950, no Rio de Janeiro fez curso de composição eletroacústica nos estúdios do "Groupe de Rechercehes Musicales" no ineicio dos anos 70, na Radio France, Paris. Em 1992 completou doutorado em composioção na Universidade New Englia, em Norwich, Inglaterra sob a orientação do compositor Dennis Smalley. volta

9 - Gilberto Mendes, compositor nascido em 1922, em Santos, cidade portuária perto de São Paulo. Após anos de formação convencional, interssou-se por todos os tipos de vanguaradas artísticas, aproximando-se da estética dos poetas concretistas brasileiros. Sob forte influência do "estilo Darmstadt" formou um grupo com os compositores Willy Correa de Oliveira, Damiano Cozella e Rogerio Duprat, denominado Musica Nova, que em 1963 lançou um manifesto contra a música de caráter nacionalista e neo clássica. volta

10 - DELEUZE, G - Logique du Sens , Paris, Minuit, 1969volta

11 - MENDES, G. - Uma odisséia musical, São Paulo, EDUSP, 1994. volta

12 - COWELL, H. - Charles Ives and his music, New York, Da Capo, 1983, (1955)volta

13 - NOBRE, M. - ."Tendências da criação musical contemporânea, in: Revista da Sociedade Brasileira de Música contemporânea nº1, 1994. volta

14 - Mauricio Kagel, argentino radicado na Alemanha e John Cage, discípulo de Schoenberg e de Henry Cowell, por sua vez, biógrafo e seguidor de Charle Ives. volta

 

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