A Forma e a Impureza
Jorge Coli
Depois de um século de valorização da
tabula rasa por meio de uma ruptura com o passado enquanto tradição, enquanto celeiro
e enquanto história, é preciso voltar atrás para compreender a natureza do terreno
sobre o qual pisamos hoje. Há um momento de cisão no qual modificou-se, de modo
essencial, a concepção daquilo que fazer música significa. Este momento foi assinalado
teoricamente através do livro de Hanslick, Do belo musical. Trata-se de um texto
prodigiosamente premonitório pois enuncia, muito precocemente, em 1854, o que é
possível chamar de uma configuração epistemológica nova. Ele instaura um campo
normativo que seria percorrido por um dos eixos mais poderosos dos caminhos modernos, não
somente para a música, mas para as outras artes também.
Não creio que o emprego da palavra
epistemologia seja aqui por demais abusivo. Ele se refere francamente a um projeto
abstrato, "descontaminado", como veremos mais à frente, cujo parentesco com as
claras estruturas científicas é pronunciado por Hanslick. Assim, referindo-se aos
efeitos emocionais produzidos pela música, ele diz "Somente protestamos contra a
utilização anticientífica desses fatos por princípios estéticos"1. Como num laboratório, Hanslick
extrai o fenômeno musical da sua contingência histórica, para tratá-lo em condições
da pureza experimental: "A pesquisa estética nada sabe e nada saberá das relações
pessoais e do ambiente histórico do compositor; ela só ouvirá o que a própria obra de
arte exprime e acreditará nisso". Muito claramente ele afirma a abstração como
essência da música e, mais ainda, bem antes de Wörringer, induz a supor que esta
essência também seja própria às artes plásticas, ao propor, primeiro o arabesco e, em
seguida o caleidoscópio, como metáfora musical. O arabesco, porque ele repousa sobre o
esvaziamento semântico na relação que as formas mantém com o mundo. A música,
arabesco em movimento, "numa permanente autoformação", advém das pulsões
criadoras através de formas cujo sentido volta-se para elas próprias. E o
caleidoscópio, porque ele traz a combinatória formal como princípio geométrico. Não
é, aliás, descabido ver, nestas duas vertentes, o germe dos dois pólos entre os quais
situou-se a pintura abstrata no século 20.
O texto de Hanslick nasce enquanto
reação e saída à invasão pletórica de uma questão fundamental para a música do
século passado. Refiro-me ao sentido dos sons dentro de uma configuração
bastante específica. A partir do século XVII, quando a invenção da ópera acentua uma
reforma na música que se dirige para a clareza e a expressão, e quando todas as artes se
redefinem, ao incorporarem, como dado essencial, o efeito produzido sobre o público -
dentro deste universo que nós costumamos chamar de barroco -, o projeto é o de comover,
de persuadir, de acalmar, de exaltar. A música, penetrando os
espíritos da maneira a mais imaterial, é, por excelência, meio capaz de agir sobre os
movimentos da alma, como forma supremamente volátil e fluída.
Durante dois séculos estabelecer-se-iam
os critérios e convenções coletivas que carregariam, de maneira cada vez mais complexa,
o sentido dos sons. Ao invés de fazermos apelo aos tratados, lembremos a Ode para o
dia de Santa Cecília, de Haendel sobre texto de Dryden, na qual são enumerados, como
numa espécie de catálogo sublime, os poderes poéticos e musicais de cada instrumento. A
estes são designados papéis sentimentais específicos: queixas de ciúmes para os
violinos, entusiasmo guerreiro para o tambor e a trombeta, e assim por diante. Isto
ilustra um dos aspectos do peso cultural na codificação do sentido dos sons naquele
momento da história.
Ora, as transformações que ocorrem no
final do século XVIII, além de provocar um esfacelamento desses códigos culturais
coletivos, mais homogêneos e claramente estruturados, introduzem um elemento de
complicação suplementar com a autonomia reflexiva própria ao artista da nova sociedade.
Isto é, além do caráter intrinsecamente dessemelhante do novo público, acrescenta-se a
situação de um artista que investe na obra de arte convicções individuais. A obra
torna-se, deste modo, o veículo de suas posições diante do mundo. O artista deixou de
dever contas ao mecenas, para obedecer às escolhas de seu coração, de seu pensamento,
de sua consciência.
A situação tornou-se, assim, muito
menos simples. Se eu quero transmitir, por meio dos sons, idéias singulares e complexas,
e se as convenções significantes desfizeram-se, é preciso que eu encontre, por mim
próprio, o meio de fazê-lo. Ou seja, eu preciso inventar meu próprio código
semântico. Desde Beethoven que a maior parte da produção musical do século XIX
debatia-se desesperadamente com este problema novo: como transmitir, por meio do som não
articulado, uma idéia, uma expressão, um sentido? Deste modo, uma sinfonia que, com
Haydn contentava-se de situações semânticas muito gerais - melancolia, arroubo,
agitação rítmica - e onde a construção sonora primava, deixa de ser apenas música,
pois deve conter uma mensagem explícita. É assim que Beethoven introduz um texto cantado
em coro num último movimento, que virá contaminar pelo sentido das palavras, a
construção musical. É assim que Berlioz concebe obras sinfônicas a serem ouvidas com
um texto que lhes serve de roteiro, destinado a indicar com precisão imagens para o
espírito do ouvinte. Ou ainda, como em Romeu e Julieta, ele criará a idéia
aparentemente paradoxal de uma sinfonia dramática. Nem ópera, nem oratório, o tecido
sonoro orquestral é carregado de sentidos e possui uma trama teatral que exige a
integração, dentro do contexto sinfônico, dos personagens desencarnados - no sentido
mais exato da palavra, pois eles possuem corpo, são apenas vozes. Formas híbridas, cujo
exemplo extremo é Lélio, obra sinfônica incluindo um narrador para informar o
ouvinte daquilo que está acontecendo na orquestra, portanto explicitando o sentido do que
poderia ser puramente som. O século XIX é rico de poemas sinfônicos, de peças para
piano descritivas ou evocatórias, de tentativas as mais diversas para produzir música
literária, música portadora de imagens e de conceitos. Wagner resolveu genialmente, pelo
seu sistema de leitmotive, as relações entre a palavra, a idéia, o sentido e a
música. Pela concomitância e pela recorrência do som com a situação dramática ou com
a frase poética, nós aprendemos que tal tema, tal acorde - ou por vezes mesmo, tal
timbre - significa um cisne, uma espada, um rio, a coragem, o amor, ou a morte. Trata-se
aqui do apogeu desta questão semântica no século passado, e compreende-se a inimizade
feroz que existiu entre Wagner e Hanslick. Trata-se também de uma solução ligada a uma
estética por demais pessoal, a uma concepção da arte por demais específica: Wagner
serviu-se dela admiravelmente, mas apenas ele podia fazê-lo.
As distinções entre os artistas da
moderna sociedade industrial e aqueles do passado aristocrático, entre o criador do
período barroco e aquele do período romântico, por mais específicas que fossem, não
atingiam o princípio fundamental enunciado no início: o de que as obras eram produzidas
em função de um público que elas deviam comover - isto é, no seu sentido etimológico,
mover com, provocando e conduzindo as emoções. Obras nunca pensadas em si, mas para
outrem. Orfeu canta para apaziguar as feras, Anfião para deslocar as pedras e, na ópera
de Monteverdi, as estanças do bardo acalmam e fazem Caronte adormecer. A sinfonia pode
nos revelar as alegrias da amizade, a ópera pode nos fazer sentir a opressão dos ciúmes
ou a morte dolorosa.
Justamente, Hanslick propõe, diante
disto, uma recusa completa, e afirma que a essência da música encontra-se em outro
lugar. Trata-se de uma situação muito equivalente à que ocorreria, mais tarde, dentro
das artes plásticas: os procedimentos imitativos, desde Aristóteles presidindo à arte
do ocidente, serão considerados como impuros e extra-artísticos - o que vale não é a
representação de algo, mas as relações das formas sobre a superfície das telas. Na
música, também, é preciso abandonar o sentido dos sons e a ação que eles exercem
sobre o público. Eis um trecho do capítulo n. 5 do livro de Hanslick, intitulado "A
percepção estética da música em oposição à patológica": "Quanto maior,
porém, é a intensidade com que um efeito artístico age sobre o físico, portanto,
quanto mais patológico é este efeito, mais diminuta é sua quota estética, frase esta
impossível de se inverter. Na criação e na concepção musical deve-se, por
conseguinte, destacar um outro elemento, que representa o que há de puramente estético
nesta arte e que, contrapondo-se ao poder, específico da música, de provocar
sentimentos, aproxima-se das condições especiais de beleza das outras artes. Este
elemento é a pura contemplação." Esta mesma pura contemplação, diga-se de
passagem, que encontraremos nos escritos de Kandinsky ou nas telas de Mondrian.
Hanslick opõe, deste modo, uma
percepção "estética", que ele baseia na exclusiva organização sonora, a uma
percepção "patológica". Esta percepção estética, esta contemplação, não
surgem, no seu texto, nem muito explicitada nem muito clara. Ela parece entretanto, algo
de sofisticadamente elevado, um gozo das puras relações sonoras entre si.
Grosso modo, foi a concepção
que vingou nos meios de vanguarda. Os formalismos triunfaram, e os procedimentos
construtores tornaram-se a própria razão de ser das obras, atribuindo-se às suas
relações interiores, a faculdade de revelar o belo. A arte não é mais para o público,
para nós; ela tornou-se um em si, cuja contemplação é o produto de uma ascese sonora.
Os artistas experimentam, não mais efeitos sobre o público, mas sistemas combinatórios
novos. A sacralização wagneriana, que pressupõe os iniciados peregrinos de Bayreuth,
isto é, aquilo que havia sido o apogeu do projeto romântico, transformou-se, agora, num
projeto de pretenso saber. O iniciado não é mais aquele que se esvazia de seu ser para
deixar-se habitar inteiramente pelos sons e emoções de Parsifal, ou de Tristão:
é aquele que conhece. Para empregarmos uma metáfora prosaica: o gozo de um bolo
pressupõe o conhecimento da receita do bolo. Atitude altamente intelectual como se
percebe, e que Adorno encarnou nas raias da caricatura, ao descrever os tipos de
"comportamento musical"2.
Não é possível enumerar todos os oito, todos tratados com um autoritarismo desdenhoso e
bastante ridículo. Assinalo apenas alguns: o indiferente musical, "filhos de
pais particularmente severos parecem, freqüentemente, incapazes de aprender a ler as
notas, condição necessária hoje para uma cultura musical honorável"; o apreciador
de música de fundo, que percebe a música como um "conforto de
distração", e que não "a aprecia, por assim dizer, de modo lúcido"; os peritos
em jazz; os ouvintes rancorosos; o ouvinte emocional, para quem "a
música serve essencialmente para liberar instintos habitualmente recalcados ou reprimidos
pelas normas da civilização, freqüentemente de exutório para uma irracionalidade que
lhe permite, a ele que fica, a maior parte do tempo, trancado dentro de um processo
racional de sobrevida, de sentir ao menos alguma coisa"3; o consumidor de cultura,
"burguês" e "fetichista", e até chegarmos ao perito, ou,
talvez, melhor, ao douto - que, evidentemente, se confunde com o próprio Adorno,
autor da tipologia: "Tratar-se-ia do ouvinte inteiramente consciente, a quem, em
princípio, nada escapa, e que, ao mesmo tempo, compreende aquilo que ouve. Qualquer
pessoa que, ao ser confrontada pela primeira vez com um trecho complexo e privado de
firmes suportes arquitetônicos, como o segundo movimento do Trio para cordas de Webern,
seja capaz de enumerar os componentes formais satisfaria, num primeiro tempo, as
exigências desse tipo".
É claro que estamos aqui, ainda, sob a
maldição de Hanslick levada ao seu extremo. Se esta catalogação pseudo-sociológica de
Adorno pressupõe o conhecimento das estruturas musicais para o gozo da música, é que
ela foi investida da verdadeira essência do belo musical. E o público ouvinte, aqueles
raros da primeira categoria, deve tornar-se douto em música para poder apreciá-la ou
amá-la. Da música pura ao público puro a passagem se fez insensivelmente, e a arte dos
sons se fecha sobre si mesma e seus privilegiados.
A tirania da forma foi exercida de modo
poderoso no pós-guerra. Mesmo quando as intenções discursivas eram fortes - na música
militante de um Luigi Nono, por exemplo - a solução revela-se contraditória. Os
instrumentos formais são tão poderosos que as palavras, incorporadas nas obras,
reduzem-se a puras sonoridades, tornando impossível a compreensão - caso agudo desse
caráter contraditório onde o campo epistêmico da forma põe em cheque a própria
possibilidade da intenção discursiva. Na França, mais particularmente tomada pela
hegemonia dos formalismos boulezianos, somente na década de 80 um grupo mais jovem,
tomando como exemplo um compositor italiano marginal, Giacinto Scelsi, iria escapar a esse
domínio, buscando na espessura e na materialidade e do som, um tecido musical onde o
princípio da estrutura é abandonado em nome de um devir flexuoso, fluindo amplamente na
espessura dos timbres. Alguns outros comportamentos musicais recentes revelam também
sintomas inegáveis de caminhos que se estendem fora do campo formal da música
"pura".
O que quer dizer, aliás, música
"pura"? Determinar o que isto seja significa apenas eleger alguns critérios que
são tomados como essenciais para certos parâmetros normativos e excluir todo o resto,
como indigno. Carregadas de um prestígio ambíguo, mas poderoso e intolerante, as
noções de "puro", de "pureza" são, aliás, sedutoramente
traiçoeiras. Basta pensar, por exemplo, que, se as juntamos com a palavra
"raça", elas se tornam imediatamente infames.
Seria bem temerário prever qualquer
futuro para a arte dos sons. Pode-se desejar, no entanto, que ele seja o mais múltiplo e
diverso possível. Pode-se pensar também que retomar o público como seu objetivo -
público heterogêneo e "impuro" - , sem que isso signifique abdicar da
complexidade e da qualidade das obras; ou reconsiderar o papel de uma semântica, ela
também impura, onde os sons surgem carregados de sentido pela cultura coletiva, pelo
teatro, pela poesia, pela palavra, sejam atitudes fecundas. De qualquer modo, é através
da mistura, da miscigenação, da impureza - palavra em verdade tão bela e tão rica -
que a cultura dos homens se faz.
Nota
1 - O grifo é meu volta
2
- ADORNO, Th. W. - "Types de comportement musical", in Musique de tous les
temps, dezembro de 1972 / fevereiro de 1973. volta
3
- O grifo é meu. volta