ANPPOM
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA

MUSICOLOGIA
Conferências e Mesa Redonda
Tema: Reflexões sobre a Contemporaneidade


Conferência: Discurso Musical e Discurso sobre Música: Sistemas de Comunicação Incompatíveis?

Gerard Béhague

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O musicólogo/filósofo norte-americano Charles Seeger (1886-1979) foi o primeiro a articular, a partir de 1925, um dos problemas fundamentais da musicologia moderna que é a dificuldade de descrever a música através da linguagem, vista como meio de distorção. Posteriormente, escreveu quatro ensaios "Linguagem/a fala, música, e linguagem sobre música", ("Speech, Music, and Speech about Music"), "Música como conceito e como objeto da percepção" ("Music as Concept and as Percept"), "Música como fato" e "Música como valor". Nestes trabalhos (Seeger 1977), levantou as seguintes questões: o que comunica a música? e o que a linguagem sobre música comunica? No primeiro ensaio, ele procurou esclarecer a natureza do problema dizendo:

Quando falamos sobre música, produzimos no processo composicional de um sistema de comunicação humana, [i. é.] a linguagem fala, uma comunicação "sobre" outro sistema de comunicação humana, a música, e seu processo composicional. A essência desse empreendimento é a integração do conhecimento verbal ("speech knowledge") em geral e do conhecimento verbal da música em particular (que são extrínsecos à música e ao seu processo composicional) com o conhecimento musical ("music knowledge") da música (que é intrínseco à música e seu processo composicional)(1977:16)

Portanto, o ponto de partida é o reconhecimento de dois tipos diferentes de conhecimento que procurarei diferenciar mais adiante.

Seeger elabora o seu pensamento da seguinte forma:

Ao falar de um outro sistema de comunicação estamos falando de um item de atenção radicalmente diferente de outros itens de atenção. Queiramos ou não, estamos falando comparativamente. Nesta maneira de falar, o processo composicional da linguagem requer a dependência dos dispositivos peculiares da sua técnica conhecidos como homologia (identidade), analogia (semelhante mas diferente), e heterologia (diferença só).

Não há motivos para supor que os dois tipos de conhecimento e dos processos composicionais são ou totalmente idênticos ou mutuamente exclusivos. Consequentemente, o empreendimento deve ser levado mormente em termos da analogia linguagem-música, levando em conta umas quantidades indeterminadas de homologia e heterologia(1977:16).

Seeger reconhece logo que a relativa ênfase que se dá à homologia, analogia e heterologia, neste processo, é assunto de amplo desacordo. Também reconhece que no mundo ocidental tradicionalmente se distingue três modos de uso da linguagem: o modo que ele denomina afetivo (o modo da sensação, do sentimento, da emoção), o modo da razão, e o modo discursivo do senso comum. O modo afetivo é o que produziu as grandes religiões e os escritos místicos da Grécia antiga até os nossos dias. Esse modo se preocupa com o reconhecimento e a afirmação de valores, estes últimos entendidos como valor interno (baseado na experiência biológica, o viver e procriar) e valor externo (experiência socio-cultural ou acomodação com a experiência interna). O modo afetivo é teleológico (aplicado à noção de finalidade, de causa final, i é, à metafísica). "Os valores mais altos, a realidade, tendem a existir além de expressão verbal, tendem a ser inefáveis" (p. 17) (as palavras sagradas para representar valores religiosos). O modo racional produziu as grandes ciências e sua preocupação especial é de descobrir e relatar aquilo que os seres humanos podem conceber e perceber como realidade no universo físico, procedendo da causa ao efeito. E se bem a realidade científica também poder ser inefável, nesse modo vale a pena (i.é tem valor) tentar torná-la "efável" (verbalmente expressível) como fato. O terceiro modo é generalizado em vez de especializado como os dois primeiros. É o modo discursivo da vida diária, do sentido comum. Combinado de maneira variada com o primeiro ou o segundo modo, produziu grande parte do trabalho literário, poesia, filosofia e estudos humanísticos. "Não há dúvida sobre a expressão ou inefabilidade da realidade, sua efetividade ou utilidade. Realidade é aquilo que o usuário é, pensa, sente ou faz" (Seeger 1977:17). A força do modo discursivo é que se isso não fosse o caso, então nem o modo afetivo nem o modo racional poderiam fazer sentido.

Para tomar essa discussão mais clara Seeger usa um modelo visual, em duas dimensões, com o quadrado maior representando todas as possibilidades da comunicação verbal, a linha pontilhada dividindo o modo racional do modo afetivo (no R estariam localizadas as disciplinas da física até as ciências sociais e a filosofia, no A os gêneros literários tradicionais); o quadrado interno representa o modo discursivo D, o ponto central o objetivo máximo da crítica, ou seja, o 'juízo perfeitamente equilibrado (considerado geralmente inatingível) do fato, do valor e da relação entre fato e valor". O modo discursivo é o veículo principal da crítica, do julgamento e da análise científica e se encontra no meio da área R (x). O criticismo afetivo (como em obras de ficção) se encontraria no meio da área A (y).

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Como se vê, a postura ontológica de Seeger, se bem enunciada com uma lógica rigorosa, se preocupa em definições e denotações precisas, mas evita sistematicamente toda e qualquer auto referência. Os conceitos são formados através de principias de distinção e relação, constituindo sistemas fora do âmbito de influencia do próprio observador. No dilema "conhecimento verbal e musical da música" que acaba sendo rotulado de "conjuntura musicológica" (l977:19), ele propõe em termos um tanto vagos a solução seguinte: reajustar os recursos possíveis e restritos do processo composicional da linguagem para combina-los mais estritamente com os recursos de vida nos dois universos do fato físico e do valor humano, e usar então o melhor juízo para encaixá-los apropriadamente. Infelizmente, não esclarece que poderiam ser esses recursos. Nesta tentativa de combinar os modos racional e afetivo da comunicação verbal num único modelo da sua relação com a música e seu processo comunicante, Seeger parte para a distinção conceptual entre música e comunicação, definindo esta última como a "transmissão de energia numa forma" (l977:19), ou seja, outro aspecto de sua postura naturalista em vez de uma posição mais epistemológica. A comunicação é sempre uma relação e não apenas uma entidade. A comunicação é interativa, dialética: forma e conteúdo, código e mensagem, produção e recepção, construção e interpretação, etc. Portanto, a comunicação deve ser assentada em termos sociológicos.

Não resta dúvida de que Seeger deu o exemplo mais convincente da importância da diferenciação entre "fato" e "valor" no processo analítico do que a música comunica, mas não logrou avançar além do reconhecimento dessa dialética. Por isso se preocupou sobretudo em estabelecer uma série de oposições lógicas entre o modo verbal e o modo musical. Sua afirmação clássica no ensaio "Música como conceito e como objeto de percepção" se refere ao fato da linguagem ser a comunicação "da visão universal como a intelectualização da realidade" e da música a comunicação "da visão universal como a sensação da realidade". (ver o quadro de Seeger 1977:35). No entanto, essa diferenciação

entre intelectualização e sensação não deixa de ser problemática, pela rigidez com que é concebida e pela rigorosa oposição dos parâmetros em vez de possíveis cruzamentos.

A questão da comunicação musical (ou "significado musical" onde a comunicação se toma sinônima com o resultado do processo de transmissão-recepção) foi estudada de um ponto de vista "estrutural" por um lado e "histórico" por outro. A primeira abordagem procura reduzir temas de significado e comunicação em questões de estrutura e autonomia, sustentando, como faz, por exemplo, Leonard Meyer (l956, 1967) que elementos estruturais são perceptualmente codificados e que se pode antecipar que irão resultar em sentimento ou emoção. Neste caso, se entende a comunicação ou o significado como uma ocorrência em que ouvir sons provoca sensações emocionais. Neste caso ainda o que a música comunica através do seu código é o que ela comunica sobre estrutura. Em outras palavras, a estrutura é o mecanismo ativo que sanciona o processo perceptual e receptor que une a emoção à experiência da audição. A segunda abordagem procura reduzir questões de significado musical em temas históricos e materiais. Aqui o significado se encontra na história e na situação no tempo e espaço em que estão localizadas formas musicais. O significado é concebido estilisticamente como a identificação de gênero e é localizado em atitudes, eventos e situações em que um estilo determinado foi concebido e difundido.

Aqui o argumento é que estudos estruturais que tratam do estabelecimento de processos psicológicos ou "constantes" não distinguem o tipo, a amplitude ou a variedade de emoções musicais, procurando apenas antecipar quais as condições estruturais que possam criar emoção ou sentimento. Os "ouvintes ideais" para quem as obras comunicam tais emoções nunca são identificados e localizados historicamente ou socialmente. Como diz John Shepherd (l977) esses ouvintes não têm idade, sexo, crenças, conhecimento técnico: são simples órgãos e respostas. O argumento contrário seria então que as mensagens dominantes da música não estão no código mas sim no fazer, e que a música comunica através e sobre as condições de sua produção. Aqui se tenta descobrir o significado nas determinantes históricas e de uso da produção.

Essa questão clássica dialética foi considerada por muitos estudiosos da estética e por cientistas sociais sob várias formas e vários rótulos: psicologia vs. marxismo, estruturalismo vs. materialismo, musical vs. extra-musical, naturalismo vs. culturalismo, e até etnomusicologia musicológica vs etnomusicologia antropológica. O antropólogo/etnomusicólogo. americano, Steven Feld (l984b), assume que qualquer e toda estrutura sonora é estruturada socialmente no sentido que ela existe através de um meio e de uma construção social e através de algum empenho ou atividade social. Portanto a interpretação é o processo de intuir uma relação entre estruturas, composições, e tipos de mensagens potencialmente relevantes ou interpretáveis. A partir daí a dialética "fato"/"valor" toma uma nova forma. O que acontece não é mais o som polarizando-se em direção à estrutura ou historia na mente humana, mas uma mensagem mais geral e imediata, de circunstancia e de contexto (contexto no sentido epistemológico de fronteiras do conhecimento). A mensagem imediata comunicada é que os sons e os seus agentes estão contextualizados e contextualizando. (exemplo dado por Feld se refere à música ambiental: muzak: a gente reconhece não só pelo som e não só pelo contexto, no elevador ou num banco; há surpresa/estranheza se a música for de qualquer outra tradição, mesmo com as características estruturais da muzak; por outro lado, há surpresa também ao ouvir essas características tocadas em volume alto. Ver Feld 1984a). Ou seja, a interpretação sempre requer um processo ativo, por mais inconsciente, intuitivo ou banal que seja, de relacionar a estrutura com possíveis mensagens, apropriadas ou relevantes. Em outras palavras, "o evento sonoro chama a minha atenção interpretativa para as circunstancias de significado através das características gerais de serem contextualizadas e contextualizando". Isso Feld chama de "marcação de fronteira" (de limite = "making a boundary"), o que foi chamado por outros de "armação" ou "framing". As tendências comunicantes mais simples e gerais da música consistiriam, para os seres humanos como atores e intérpretes, em fronteiras, armações e contextualização.

A natureza do discurso musical. Panorama histórico

No mundo ocidental da Grécia antiga até o fim da Renascença a natureza da música era vista como metafísica e ética. Na visão do mundo de Pitágoras e Platão a música e o cosmos estão sempre combinados, seja nos conceitos da harmonia cósmica ou da música das esferas (aliás a música terrestre não passava de uma imitação dessa música das esferas). No desenvolvimento da matemática de Pitágoras, o reconhecimento da perfeição harmônica justificou a inclusão da música entre as quatro disciplinas matemáticas no quadrivium (aritmética, música, geometria, astronomia). Na concepção de Platão acreditava-se que a música, ou pelo menos o sistema musical, proporcionava um modelo para a alma. Também se atribuía à música propriedades e influencias éticas. A República e as Leis de Platão incluem extensas discussões sobre o poder de vários tipos de música para o bem ou o mal na formação do caráter do indivíduo e da sociedade de uma modo geral. No 32 livro da República, se consideram modos musicais, instrumentos e ritmos em relação ao seu espírito e a suas crenças (ou ethos, caráter ético), alguns dos quais se recomenda sejam usados, outros proibidos. Platão não teve nenhuma dúvida a respeito da verdadeira eficácia da música sobre o indivíduo e a sociedade, não só no sentido de controlar comportamentos humanos mas de poder influenciar estados de espírito, como o efeito musical no sentido de acalmar paixões e sentimentos (com a explicação da equivalência estrutural do cosmos, da alma e da música).

A percepção dos sentimentos produzidos pela música acabou sendo atribuída às propriedades supostamente intrínsecas e objetivas da música. Os estudiosos da historia da estética musical ocidental, como o nosso colega o Prof. Enrico Fubini, entre muitos outros, demostraram o quanto a expressividade foi o princípio fundamental da concepção musical durante os vários períodos da história da música ocidental. Em alguns a relação expressão-retórica ou oratória foi mais influente, em outros (século XVIII) os efeitos da música foram relacionados com a imitação de verdadeiros sentimentos ou emoções (realismo e racionalismo), ou ainda, na estética romântica, a relação música-poesia, ou o realismo emocional como na música programática do século XIX. A estética musical do nosso século se preocupou sobretudo com principias e formas especificamente musicais, onde se entende a música como uma interação de forças, uma manifestação de energia, mas sempre como parte intrínseca da música, não sendo de natureza nem física nem psicológica. Em todas essas concepções, no entanto, predomina a crença fundamental na expressividade intrínseca dos parâmetros do próprio sistema musical, sem levar em conta considerações de ordem social (com a exceção talvez do indivíduo criador e receptor durante a era romântica e como resulta do aparecimento da sociologia da música a partir de 1921, a data da publicação póstuma do ensaio de Max Weber, O fundamento racional e social da música).

O discurso musical autônomo ou não?

A ideologia da autonomia da arte continua levantando polêmicas sem fim. Muita gente continua acreditando que a Música (pelo menos a grande música de obras primas!) possui uma qualidade essencial de transcendência que justifica a sua "estética autônoma". Isso se deve sobretudo à ideologia romântica do século XIX sobre a natureza abstrata, não-verbal e não-representativa da arte em geral, e também se deve à noção, também romântica, da posição social do artista-gênio, isolado da sua sociedade, e capaz também de transcender o social, o político e o quotidiano. Em outras palavras, uma ideologia estética que via o artista, compositor (separado do artesão) como o único e privilegiado iniciador/criador da obra de arte (especialmente a partir da dissolução do patrocínio do artista). No entanto, não há dúvida de que, de um modo geral, o horizonte do pensamento estético no ocidente tem sido bem limitado tradicionalmente. Ninguém pode negar que como parte da cultura expressiva a música não é dissociável da cultura. E a cultura é evidentemente um produto social, e o seu estudo e o das artes em geral deve ser fundamentado desta maneira em termos sociológicos. Entre os fatores sociais e econômicos que parecem relevantes para o entendimento da arte estão: as formas contemporâneas de patrocínio da música; as instituições dominantes da produção e distribuição cultural; a relação do Estado com a produção cultural; e a natureza e constituição dos consumidores dos produtos culturais. Não há dúvida de que a historia de qualquer arte é a historia da interação desses numerosos fatores.

Além das instituições e das relações sociais através das quais o produto cultural é produzido e consumido, existe o próprio texto cultural que, não surpreendentemente, é portador de algum aspecto desses processos históricos nos quais se origina. A recente orientação analítica dos textos procura interpretar o significado dessa obras em termos das categorias sociais e ideológicas que nelas estão representadas. A arte em geral é sempre ideológica, não apenas no sentido de que possa conter uma mensagem política, mas no sentido de que os seus significados são de fato a representação artística ou musical do extra-estético. A música não só reflete a realidade social mas está implicada na produção desta última. É o que se entende por antropologia musical. Por outro lado, é muito importante lembrar que o significado que resulta da leitura dos textos é de alguma forma aquele produzido pelos leitores ou ouvintes. Mas pelo fato de que os textos oferecem uma variedade de interpretações, novos leitores os interpretam dentro da perspectiva da sua própria experiência e visão. Portanto, o significado não pode ser fixo e imóvel, e a leitura é sempre uma re-leitura. Por isso mesmo, a arte não pode ser autônoma. Pensar em autonomia, hoje em dia, é totalmente anacrônico considerando os avanços teóricos da musicologia e etnomusicologia. Qualquer crença em autonomia da música no discurso musical implicaria uma impossibilidade de discurso sobre música que seja relevante em relação a aquele e, em última análise, não passa de um "idealismo elitista", para usar a expressão de John Shepherd. É exatamente o que acontece nas abordagens analíticas tradicionais onde os supostos fatores externos à música (vista exclusivamente como estrutura e fenômeno sonoro) não são considerados ou são negligenciados. O conceito de "belas artes" (ou a arte pela arte divorciada de contexto e função social) apareceu durante a primeira metade do século XVIII. Existem centenas de exemplos deste tipo de abordagem, desde os tratados de Antoine Reicha no principio do século XIX até as publicações de Guido Adler, Hugo Riemann, Sir Donald Tovey e os teóricos mais modernas. Ou se trata elementos estruturais dentro de um formalismo bastante severo, ou se usa uma descrição poética livre e subjetiva (como no caso dos Essays in Musical Analysis de Sir Tovey).

A estrutura musical como estruturas

O som estruturado deve ser considerado como um "fait social total" no sentido que sociólogos como Durkheim e Mauss enfatizaram a importância da ação simbólica num mundo existencial inter-subjetivo, e as maneiras em que a participação nesta ação simbólica constrói e forma continuamente as percepções e os significados dos participantes. Os adeptos da chamada "sociomusicologia" (entre outros Charles Keil, Steven Feld, Marina Roseman, e Anthony Seeger) acreditam que a base para comparar a vida social dos sons deve ser qualitativa mas também pensam que as comparações podem ser assentadas de a forma a não simplificar demais as dimensões especificamente culturais (e culturalmente especificas) de toda e qualquer realidade sociomusical. Para tal, propõem seis áreas gerais de pesquisa da música como um fato social total ou da vida social dos sons organizados. Como disse Feld "cada área tem por objetivo levantar uma série de questões socialmente e musicalmente situadas que considerem estruturas sonoras como sendo socialmente estruturadas, organizações sonoras como sendo socialmente organizadas, e significados dos sons como socialmente significativos (l984b:386). Essas áreas incluem: competência, forma, performance, meio ambiente, teoria, e valor e igualdade. Entre as numerosas questões possíveis estão as seguintes (citando e parafraseando as colocações de Feld 1984b):

1) competência: quem (no grupo cultural) faz música ou manipulam sons, e quem pode interpretá-la ou usá-la? Qual o modelo (a prática) de aquisição musical e aprendizagem? Que tipos de estratificação de habilidade e conhecimento existem? Como são sancionados, reconhecidos e mantidos? Existem ideologias de "talento" e como determinam a aquisição e a competência? Qual é a relação entre competência, habilidade necessidade (ou desejo) da música? Quais as diferenças entre habilidades de produção e de recepção, para indivíduos ou grupos sociais?

2) forma: quais são os meios materiais musicais e como são organizados dentro de códigos reconhecíveis? De que maneira são esses meios distribuídos entre os participantes? Quais são os limites das formas percebidas? O que quer dizer estar "errado" ou "incorreto", ou de algum modo marginal, do ponto de vista da flexibilidade do código e do seu uso? Quão flexível, arbitrária, elástica ou aberta é a forma musical? Quão resistente às mudanças, às pressões internas e externas, ou a outras forças históricas.

3) performance: quais são as relações entre formas expressivas individuais e coletivas e os contextos da performance? Como se coordenam as formas na performance? Quão elástica e adaptável é a forma musical quando manipulada por executantes diferentes num mesmo momento e através do tempo? De que maneira aparecem na estrutura e no comportamento da performance relações sociais competitivas ou cooperativas? Que significados têm essas relações para os músicos executantes e para o público ouvinte? Se for o caso, de que maneira pode a performance atingir objetivos pragmáticos (por exemplo de evocação, de persuasão, de manipulação)?

4) meio ambiente: que recursos oferece o meio ambiente? Como são explorados? Existem conceitos ecológicos e estéticos que unem o ambiente e os modelos sonoros? Quais são as relações visuais, auditivas e de outros sentidos entre as pessoas e o ambiente? Quais são os mitos e as lendas que constróem a percepção do ambiente? Quais as associações místicas ou cosmológicas com o ambiente que apoiam ou contradizem, ou de outra maneira se relacionam com o contexto socio-econômico das crenças e ocasiões musicais?

5) teoria: quais são as fontes de autoridade, sabedoria e legitimidade sobre os sons e a música? Quem pode ter conhecimento sobre o som? É o conhecimento musical público, privado, ritual, ou esotérico? Quais são as dimensões ou os fatores do pensamento musical que se verbalizam? Ensinados verbalmente? não verbalmente? É a teoria necessária? Quão separada é a teoria da prática? Que variedades de atividade e de conhecimento entram na teoria ou estética musical?

6) valor e igualdade: quem valoriza e avalia os sons? Quem pode ser valorizado e avaliado como produtor ou produtora de sons? De que maneira os recursos expressivos da cultura são distribuídos entre homens e mulheres, ou entre jovens e velhos? Como parecem as estratificações sociais? Como se manifestam possíveis equilíbrios e desequilíbrios na ideologia expressiva e na performance? Os sons são secretos? poderosos? (para quem? por que?) ou podem mentir, enganar (a quem? e por que?). De que maneiras as performances marcam ou mantêm diferenças sociais? Como são interpretadas essas diferenças? como são mantidas, aceitas ou resistidas e refutadas?

Essas e outras questões possíveis têm por objetivo formular uma abordagem para a "integração das análises microscópicas e etnograficamente detalhadas de vidas musicais", com uma série de preocupações gerais, comparáveis e relevantes que podem apoiar a comparação das realidades e práticas socio-musicais. Se reconhece, finalmente, que "para uma determinada sociedade, tudo que é socialmente significativo não é necessariamente salientado musicalmente. Mas para toda sociedade, tudo que é musicalmente salientado é sem dúvida marcado socialmente, se bem numa grande variedade de formas, algumas mas supérfluas que outras". E na elaboração dos sentidos da "coerência" nos sistemas simbólicos, a característica primordial é a metáfora. Como bem articularam Judith e Alton Becker (l981:203) "as metáforas ganham poder -- e até deixam de ser tomadas como metáforas -- a medida que vão adquirindo 'iconicidade' ou naturalidades'. A coerência da ordem social e musical se faz através das metáforas que para os "nativos" são realmente seus modelos socio-culturais e suas possíveis realidades socio-musicais.

Portanto, essa sociomusicologia comparada (e comparativa) tenta elaborar não tanto correlações entre estruturas do canto e estruturas sociais (como pretendia a cantométrica de Alan Lomax) mas coerências de estruturas sonoras como estruturas sociais.

Dentro dessa visão, vários musicólogos e etnomusicólogos ignoraram propositadamente a distinção clássica entre o discurso da música e sobre música. No entanto, o falar sobre música é uma realidade que não se pode ou deve ignorar, não importa qual seja a orientação da fala. O importante é perguntar por que e como o falar sobre "música", e admitir que constitui um campo sério e empírico de pesquisa, tende a ameaçar o status quo da análise musical tradicional. Ao mesmo tempo, devemos levantar o por que e como a música "como um sistema principal modelar" (de acordo com John Blacking) ameaça as teorias linguo-cêntricas de simbolização e as posturas de "significado" dominantes nas humanidades e nas ciências sociais. Será possível, me pergunto e pergunto a vocês, substituir este histórico pas de deux com uma teorização mais dialética da distinção "de e sobre" música do tema desse nosso encontro?

Pode ser que o discurso sobre música ameace o status quo em análise musical porque ele precisa analisar outra coisa que "música" enquanto partituras, sons ou performances. Se a música consistisse somente em forma ou estrutura (como quer tanta gente ainda hoje), se pudesse ser analisada como estrutura pura, falar sobre música seria então periférico para compreender o que é música. Essa corrente em conceber a música como estrutura pura, ou pelo menos em achar que temos possibilidade de isolá-la como tal, tem sido um tema dominante na musicologia e etnomusicologia moderna.

Ao tratar de culturas musicais não-européias, o discurso sobre música representa uma ameaça para a análise e os analistas ocidentais, e essa ameaça está incorporada, em parte, no requisito inalterável da necessidade de aprender novos métodos analíticos desconhecidos, estranhos ou alheios, onde entram pensamentos, métodos e abordagens desconhecidos. Jean Jacques Nattiez (l990) sugere que falar sobre música inclui somente uma parte do fato musical e portanto distorce este último (talvez por não poder ser reduzido ao nível neutro). A limitação conceptual parece ser, neste caso, que a verdade do fato se encontra nas estruturas e não nos discursos. Por exemplo, a compreensão do fazer musical num país tão complexo como o Brasil requer a reavaliação de vários temas e processos como as várias concepções brasileiras de tempo, história e eventos musicais (nos quais as fronteiras entre música e linguagem como entidades separáveis se apagam). Proporia, por exemplo, uma consideração "linguística-musical" para as cantigas de saudação no candomblé baiano. Estas cantigas são feitas de fórmulas através das quais características lingüísticas e musicais interagem e causam alterações em cada uma, formando uma totalidade de discurso musical-linguístico. A música é capaz de assumir características fonológicas da linguagem (os tons da fala), adquirindo um status quase lingüístico. Por outro lado, a linguagem é capaz de reduzir as restrições semânticas do vocabulário através da equivalência sintagmática, adquirindo um status quase musical. A análise dessas cantigas não pode ser limitada a estruturas puramente sônicas, deve ser vista, pelo contrário, como um complexo de elementos musicais e não-musicais, e de pensamento, assim como de qualidades visuais (no caso a dança ritual). A afirmação geral de que os afro-baianos/músicos de terreiro não possuem uma teoria musical ou uma meta-linguagem (por não verbalizarem sobre música), leva a uma avaliação analítica deficiente pela incapacidade do analista de ouvir aquela música de maneira apropriada, i. é, êmica. Em performances de candomblé que presenciei e observei durante muitos anos, o discurso sobre música é freqüentemente parte integral do evento musical/ritual, e palte essencial da estética da performance que é icônica da estrutura social do grupo e dos seus ideais, e indéxica de uma performance dada. Ou seja, o discurso lingüístico em várias formas é parte integral da performance. Num caso deste, uma abordagem possível que poderia reconciliar o discurso musical e sobre música teria que encarar eventos musicais como eventos complexos incorporando linguagem e música e a possibilidade de abstração entre os dois. Este tipo de compreensão poderia ser abordado através da concientização da inseparabilidade dos elementos totais da performance musical.

Se a música como "sistema modelar principal" ameaça teorias linguo-cêntricas de significado, é porque ela não está baseada nas formas clássicas de significação icônica e indéxica. A música é metafórica. O significado musical não pode ser condensado em relações explícitas (numa correspondência de uma a uma). Se deve, pois, cavar mais fundo nas próprias vidas daqueles que fazem música, para buscar e entender como eles, especificamente, conceitualizam o seu mundo.

Portanto, a função comunicante do discurso sobre música não é unilateral. Ela é muito mais do que a intelectualização da realidade, como queria Charles Seeger, ela faz parte desse realidade. Modelos lingüísticos (como aqueles propostos por Tedlock and Sherzer) sugerem que a transmissão do significado ocorre não só no nível semântico mas que formas micro-paralelas na forma sonora das estruturas lingüísticas codificam pensamento, sentimento e experiência vivencial. É possível inter-relacionar estruturas lingüísticas e estruturas musicais. A música de candomblé exibe uma coordenação de estruturas lingüísticas e musicais através das quais se evoca a inconicidade por elementos não-semânticos no canto. Apesar do pessoal de santo repetir que "as palavras são o que torna a cantiga bonita", a situação real do discurso em línguas yorubá ou fon na Bahia, e a evidencia a partir de longas conversas que eu tive com esse mesmo pessoal que confirmam que as letras das cantigas em yorubá ou fon não são entendidas pela maioria da gente de terreiro, tudo isso sugere que a forma sonora das palavras mais do que o sua inteligibilidade semântica é que é responsável pelo sentido de expressar "beleza" musical. Isso também sugere que a importância dessa inteligibilidade semântica diminui em situações musicais em que se expressa solidariedade social.

Esse meu "discurso" (que, espero, seja de senso comum) me leva finalmente a considerar as condições de compatibilidade entre os discursos musical e sobre música. Nessas alturas, deve ficar bastante óbvio que considero os respectivos discursos como a cara e a coroa da mesma moeda, ou o significante e o significado. A relação básica entre os dois é complementária. Se a inefabilidade da música existisse realmente, não haveria tanto discurso e tanta fala sobre música. Os significados que emergem de eventos sonoros não podem ser reduzidos somente a um nível puramente sônico. Da mesma maneira, como John Blacking insistiu tanto (l973), a som organizado humanamente não é separável da humanidade organizada sonoramente! Elementos integrais da performance musical podem ser meta-musicais ou extra-musicais e podem ser percebidos por aqueles que fazem música tanto como parte dos mundos musical-contextual como o próprio som musical. O discurso sobre música (ou o discurso em música) é tanto um elemento do conceito do terreiro baiano (como já fiz referência) dos eventos musicais (que integram o fazer musical, a dança, a cozinha dos santos, e a fala meta-performativa) como são os próprios sons dos atabaques e dos agogôs.

Uma polaridade em estudos musicais, representada em um extremo por latino-americanos ou africanos falando como ocidentais em termos ocidentais para públicos ocidentais, e em outro extremo, por ocidentais vivendo em aldeias indígenas amazonas ou africanas aprendendo a tocar atabaques ou flautas gigantes, essa polaridade tem sido um dos modos de medir a disparidade entre os discursos musical e sobre música. A ponte entre extremos em ideologias e metodologias poderia vir a ser uma integração entre a etnografia dos povos indígenas e a das referências dos pesquisadores para interpretar e vivenciar os mundos musicais. Ambos o fazer musical e o falar sobre música poderiam aderir e refletir principias estéticos semelhantes, de modo que o estudo da estética (como iconicidade de estilo, por exemplo) poderia vir a ser um meio seguro de correlacionar estrutura sonora com e como estrutura social, e um meio de integrar áreas de experiência conceptual, ambiental e sentimental/emotiva.

Referências bibliográficas

Becker, Judith e Alton. 1981. "A Musical Icon: Power and Meaning in Javanese Gamelan", em Wendy Steiner, org., The Sign in Music and Literature. Austin: The University of Texas Press, 203-215.

Blacking, John. 1973. How Musical is Man? Seattle: University of WashingtonPress.

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