Considerações
sobre as Teorias e o Método de Análise Schenkerianos
Roberto Saltini1
A teoria e o método analítico
associados ao pianista e teórico Heinrich Schenker (18681935), desenvolveram-se com
o intuito de revelar os segredos de coerência orgânica nos trabalhos (principalmente)
dos mestres vienenses dos séculos XVIII e XIX. A teoria de Schenker é única,
especialmente no que se refere à sua forte ênfase em contraponto estrito (ou condução
melódica), e ao seu sistema de níveis estruturais hierarquicamente distribuidos. O que
torna o método analítico associado a esta teoria particularmente eficaz, é a sua
habilidade em: (i) interpretar e representar o complexo de conduções melódicas
presente, em pequena e larga escalas; (ii) mostrar sistematicamente as conexões
existentes entre este complexo melódico resultante, e os movimentos harmônicos típicos
do Sistema Tonal; e finalmente, (iii) integrar estes componentes com um conceito mais
abrangente de desenvolvimento motívico. 2
A teoria de Schenker apresenta
como ponto de partida os seguintes elementos fundamentais: é uma teoria natural, ou seja,
é baseada na série harmônica, ou mais particularmente, no que o autor define como sendo
o "acorde da natureza". Ela abertamente suporta toda a sua coerência, através
de uma típica analogia biológica com o que o autor define como unidade orgânica.
Finalmente, ela apresenta as funções harmônicas diatônicas (onde os decorrentes
cromatismos são considerados elaborações ou mesmo"distorções") e o sistema
de contraponto por espécies como paradigmas, dos quais qualquer composição tonal livre
nada mais é do que uma elaboração. Outros aspectos pouco discutidos mas bastante
problemáticos da presente teoria, são que ela apresenta uma forte inclinação
ideológica com respeito a elementos culturais, políticos e religiosos e, um dos aspectos
mais discutíveis, ela aceita somente o gênio alemão como o verdadeiro músico e
artista. 3
Para Schenker, o gênio
"improvisa" com base nos elementos fornecidos pela natureza, e com os sistemas
naturais da harmonia e do contraponto: isto é "elaborar" (Auskomponierung) a
partir do plano de fundo (Hintergrund) 4. Através de uma série
progressivamente mais livre de níveis mais detalhados (Schichten), chegamos à partitura
musical, com todos os seus detalhes. Schenker acreditava que o gênio poderia apreender e
controlar todos os níveis simultaneamente, e que aquele que não fosse gênio, estaria
condenado a "vagar em vão" no plano de frente, criando pastichos ao invés de
obras primas organicamente coerentes: "Elaboração é música. A história demonstra
isso nos trabalhos dos grandes mestres; e a história também vai mostrar que é a perda
na habilidade de elaborar que tem sido a decadência da música [...]. Portanto, a
totalidade do plano de frente é uma única, totalmente abrangente figura de
diminuição". 5
A progressão central ou estrutura
fundamental (Ursatz) pela qual o compositor inicia uma obra, representa o mais básico e
natural aspecto em harmonia, melodia e contraponto. Ele desenvolve uma obra completa
compondo através de uma série de níveis, adicionando camadas sucessivas de linhas
melódicas (diminuições) e harmonias como prolongamentos dos elementos do plano de
fundo, até que o nível mais elaboradoa partitura musicalseja atingido
(Figura 1). Os três planos principais neste processo são: plano de fundo, plano
intermediário e plano de frente. Os planos intermediário e de frente (particularmente o
anterior) podem ainda ser subdivididos em mais planos. O objetivo da análise passa a ser,
então, descobrir este caminho tomado pela elaboração, permitindo ao músico capaz, uma
apreciação dos métodos empregados pelos mestres, assim como sugerir como seus trabalhos
diferem dos pastichos de compositores menores. Tal apreciação da vida interior das obras
primas musicais consistiria no único caminho possível para uma correta apreciação e
interpretação destas obras.

FIGURA 1. Elaboração e conceitos
relacionados.
O objetivo da narrativa abaixo, é
seguir a trajetória do processo de Auskomponierung, usando como exemplo um pequeno trecho
do terceiro ato da ópera Der Freischütz de Carl Maria von Weber.
A série harmônica do Exemplo 1(a) dá
origem a tríade de Mi maior do exemplo 1(b) (Schenker como a maioria dos teóricos até
seu tempo, rejeitou o sétimo e nono parciais em seu sistema, no caso, Ré e Fá#). A
decisão composicional primordial, de acordo com o sistema, consiste na disposição das
notas deste acorde. No presente exemplo, o quinto grau (5) é colocado no soprano como
mostrado no exemplo 1(c). Essa disposição cria o espaço tonal (Tonraum) desta
composição que, estritamente falando, determina o início do plano de fundo (exemplos
1(a) e 1(b) fazem parte de um pré-plano de fundo sistêmico). A tarefa
composicional mais profunda é criar uma linha que leve este quinto grau por movimento
conjunto até o primeiro grau (1) para atingir o seu "repouso" final na
fundamental do acorde: exemplo 1(d). A linha fundamental (Urlinie) criada
por este movimento descendente, também necessita uma harmonização. Existem diversas
maneiras de se obter esta harmonização, algumas mais "interessantes" que
outras. A versão utilizada aqui é mostrada no Exemplo 2 (a linha fundamental pode
começar no quinto grau (5) ou no terceiro grau (3) e, ocasionalmente, no oitavo grau (8),
mas ela sempre descende para o primeiro grau (1) por movimento diatônico conjunto).

EXEMPLO 1. A série harmônica em Mi,
espaço tonal e a linha fundamental (Urlinie).
O movimento do baixo no exemplo 2, já
introduz uma breve elaboração do movimento harmônico essencial, IVI. Esse
padrão IVI é chamado de arpejo do baixo (Bassbrechung). Neste caso, o lá
grave suporta um acorde de preparação da dominante, ii6. A Urlinie e o Bassbrechung
juntos, formam o Ursatz, ou estrutura fundamental. A Urlinie representa a essência do
movimento melódico (linha diatônica), o Bassbrechung a essência do movimento harmônico
(a relação tônicadominante), e os dois em conjunto representam a essência do
contraponto (somente consonâncias em primeira espécie). O estereótipo mais comum da
frase harmônica consiste de uma tônica, extensão da tônica ou prolongamento (de alguma
maneira), mais um fechamento (cadência).
O Exemplo 3 introduz um dos mais simples
prolongamentos de tônica: um padrão IVI aninhado (nos diversos padrões
IVI que encontramos através de uma composição, o V é mais comumente
chamado de dominante divisóriaTeiler).

EXEMPLO 2. A estrutura fundamental (Ursatz).
O Exemplo 4 adiciona mais detalhes
(diminuições ou ornamentações): prolongamento do quinto grau (5) sobre a dominante (V)
através de uma bordadura superior (Dó#), uma dominante divisória (V7/V), neste caso,
secundária ou individual, e uma simples repetição da dominante (V), e também uma
redistribuição das notas internas do segundo acorde de tônica (um simples arpejo
servindo de elaboração ou prolongamento). Note-se que, estritamente falando,
prolongamentos denotam a expansão de um contraponto básico através das diferentes
espécies. Porém, esse significado já se perdeu em grande parte da literatura
Schenkeriana, onde prolongamento é sinônimo de elaboração nos planos intermediários e
de frente. O que é importante neste e em outros gráficos, são os princípios gerais que
regem a estrutura fundamental e a elaboração através dos subsequentes níveis
estruturais.

EXEMPLO 3. Prolongamento usando
IVI aninhado.

EXEMPLO 4. Prolongamento da dominante
(V).
O Exemplo 5 introduz figurações do
quinto grau (5) sobre a tônica (I): um acorde ornamental de sétima diminuta (obviamente
um acorde linear formado por bordaduras superiores e inferiores) e uma linha de terça
(Terzug) no soprano (as notas SiLáSol# conectadas por uma haste aninhada).
Essa mesma linha é harmonizada por uma outra progressão IVI, ou seja, outro
aninhamento, já que esta progressão ocorre dentro de uma outra progressão
IVI de plano intermediário apresentada no exemplo 3 acima.

EXEMPLO 5. Prolongamento da tônica (I).
Um outro aspecto importante é uma linha
de terça colocada acima do quinto grau (5) sobre a dominante (V). Linha (Zug) refere-se a
uma figura formada por movimento conjunto que se estende por um intervalo consonante.
Portanto, uma linha de terça cria um intervalo de terça, uma terça menor, Si até Sol#,
no primeiro caso, e uma terça maior, Ré# até Si, no segundo (obviamente, a linha
fundamental desta peça é um exemplo de linha de quinta). A linha de terça acima da
linha fundamental, é uma figura ornamental que começa acima da nota principal (Kopfton)
desta linha fundamental (o Si), e desce até ela. Atividade melódica acima desta nota
principal é genericamente chamada de jogo limítrofe (Ränderspiel) e estabelece o limite
em termos de tessitura da composição.
O último exemplo (Exemplo 6),
inclui um outro nível de elaboração no seu primeiro sistema (discutido abaixo), uma
"redução rítmica" da partitura no seu segundo sistema, e uma redução para
piano e voz em seu terceiro sistema. 6 Este último exemplo não apresenta
a cena e a ária inteiras, mas sim, a primeira estrofe do hino cantado por Agathe na
primeira parte; esta estrofe é aqui tratada como uma composição completa, somente para
demonstrar os pontos teóricos tratados.
No exemplo 6, o primeiro acorde de
tônica (I) é redistribuido nas partes superiores. Esse movimento forma uma ascenção
inicial (Anstieg) em direção ao quinto grau (5) estrutural (note-se que, estritamente
falando, ascenção inicial refer-se ao movimento por graus conjuntos em direção à
primeira nota da linha fundamental, mas o termo é também usado em relação a um prefixo
que pode ser uma linha, um arpejo da tríade de tônica, ou uma combinação de ambos).
Subsequentes elaborações como prolongamento da dominante ocorrem nos compassos 58:
uma rápida progressão VV/VV (correspondente ao padrão IVI em
Si) nos compassos 56 acompanhada de uma linha de terça ascendente, e também no
compasso 6 através de um prefixo para a dominante, que cria uma escapada (echappé) na
voz do soprano. A repetição da tônica do compasso 9 em diante, é agora elaborada com o
uso de uma série de dominantes divisórias. No compasso 13, surge uma transferência de
registro, ou seja, uma nota de uma mesma voz contínua é transferida para uma oitava
distante, colocando-se acima da verdadeira nota da voz do soprano (Si).
O quarto grau (4) da linha
fundamental (compasso 14) não chega a ser alcançado pelo soprano, mas sim pelo que é
literalmente o alto (que aqui aparece se movendo de Si para Lá nos compassos 1314).
Essa confusão de vozes surge principalmente por causa da transferência de registro, onde
o soprano "real" se utiliza de uma nota que "na realidade" pertence ao
alto no complexo de conduções melódicas. O soprano mesmo só alcança o Lá no segundo
tempo fazendo com que o terceiro grau (3) não soe de maneira alguma, a não ser como uma
apojatura do Fá#. No entanto, considerando-se os níveis anteriores de elaboração,
podemos dizer que a nota Sol# está implícita aquiou seja, mesmo não estando
presente, ela é parte integrante do complexo de conduções melódicas. Tais
deslocamentos de notas estruturais em níveis mais tardios não são incomuns em música
tonal. Finalmente, a harmonização do terceiro (3) e do segundo (2) graus da escala com
uma figura cadencial de dominante, é aceitável, uma entre as pouquíssimas exceções à
regra geral de que notas da linha fundamental necessitam de suporte harmônico consonante. 7
O conteúdo dos planos de frente,
intermediário, e de fundoos três níveis de estrutura que Schenker
reconhecenão é precisamente determinado, mas em geral podemos adotar a regra que
os níveis de elaboração até a estrutura fundamental (a linha fundamental acrescida do
arpejo do baixo) são considerados um "pré-plano de fundo" e a própria
estrutura fundamental forma o chamado plano de fundo; existem vários níveis
intermediários que formam o chamado plano intermediário; e que o nível mais próximo à
superfície musical é o plano de frente. Em nossa análise, exemplos 1 e 2 formam um
"pré-plano de fundo" e plano de fundo, respectivamente; exemplos 3 a 5 formam o
plano intermediário (podendo ser chamados de planos intermediários 1, 2 e 3) e,
finalmente, exemplo 6 forma o plano de frente.
Já que Schenker descreve três
amplos níveis de atividadeplanos de fundo, intermediário e de
frentenormalmente assumimos que as análises devem apresentar três níveis
correspondentes a estes descritos por ele. Na realidade, porém, isso nem sempre acontece.
O número de níveis pode variar de acordo com a complexidade da peça ou de acordo com
aqueles detalhes que o analista pretenda demonstrar, e esses níveis podem ser
distribuidos de diferentes maneiras. Um procedimento bastante comum é mostrar um plano de
fundo, dois ou mais planos intermediários, e um ou, ocasionalmente, dois planos de
frente. Um padrão estabelecido por Schenker em suas Five Graphic Music Analyses pode
servir como nosso modelo: apenas uma das análises apresenta três níveis que
correspondem perfeitamente aos planos de fundo, intermediário e de frente (O Cravo Bem
Temperado, Volume I, Prelúdio em Dó maior). 8 Os três níveis
descritos consistem de um plano de fundo (linha fundamental e arpejo do baixo), três
planos intermediários numerados (chamados de Schichten), e um Urlinietafel, que é um
tipo especial de gráfico para o plano de frente (já visto no exemplo 6, primeiro
sistema). O Urlinietafel, que nós traduziremos livremente como "diagrama da linha
fundamental", é essencialmente um gráfico do plano de frente acompanhado de barras
de compasso e das principais figuras motívicas da superfície musicalou outras
características literalmente presentes na música (note-se que a quinta análise nas Five
Graphic Music Analyses não é completa; ela mostra somente o desenvolvimento da Sonata em
Mib maior, Hob. XVI/49, primeiro movimentoessencialmente três níveis de plano de
frente).
Trabalhos Citados
BEACH, DAVID. "The Cadential
Six-Four as Support for Scale-Degree Three of the Fundamental Line". Journal of
Music Theory 34/1. 1990. p. 8199.
FORTE, ALLEN e STEVEN GILBERT. Introduction
to Schenkerian Analysis. New York: W.W.Norton & Co. 1982. 327p.
SCHENKER, HEINRICH. Das Meisterwerk
in der Musik. Vol. 2. Munich: Drei Masken Verlag. 1926. 196p.
_____________________. Five Graphic
Music Analyses. New York: Dover Publications. 1932. reimp. 1969. 43p.
_____________________. "Organic
Structure and Sonata Form". Tradução para o inglês de Orin Grossman. Readings in
Schenker Analysis and Other Approaches, Maury Yeston (editor). New Haven: Yale University
Press. 1977. 224p.
Nota
1 - Pesquisador recém-doutor do CNPq
atuando junto ao Instituto de Artes da UNESP, São Paulo.volta
2 - Se aceitarmos alguns problemas nas
formulações básicas da teoria, integrar estes componentes acima delineados com
conceitos de forma, ritmo e métrica musical, conceitos estes nunca claramente descritos
por Schenker.volta
3 - Obviamente, a problemática do
chauvinismo alemão, a estética cultural do final do século XIX e a reação política
decorrente destes fatores, deve ser entendida no contexto imediato da pré e do pós I
Grande Guerra.volta
4 - Termos significativos são dados em
itálico na primeira vez em que aparecem.volta
5 - Heinrich Schenker, Das
Meisterwerk in der Musik, Volume 2 (Munich: Drei Masken Verlag, 1926): 40. Sobre a
improvisação partindo do plano de fundo, ver o artigo "Organic Structure and Sonata
Form", tradução para o inglês de Orin Grossman, in Maury Yeston (editor), Readings
in Schenker Analysis and Other Approaches (New Haven: Yale University Press, 1977):
3853.volta
6 - Uma redução rítmica é
essencialmente uma partitura original, cujas notas não-harmônicas foram removidas. Para
uma clara descrição dos critérios usados na elaboração destas reduções, ver Allen
Forte e Steven Gilbert, Introduction to Schenkerian Analysis (New York: W.W.Norton
& Co., 1982): 136.volta
7 - O problema envolvendo o acorde
cadencial 6/4 e o suporte harmônico para o terceiro grau (3) da linha fundamental é
amplamente discutido em David Beach, "The Cadential Six-Four as Support for
Scale-Degree Three of the Fundamental Line", in Journal of Music Theory 34/1
(1990): 8199.volta
8 - Heinrich Schenker, Five Graphic
Music Analyses (New York: Dover Publications, 1932; reimp. 1969).volta