A Educação Musical como Fator de Interdependência entre o Discurso
Musical e o Discurso sobre Música
Vanda Lima Bellard Freire
O tema deste encontro - articulação
entre os discursos musical e sobre música - parece revelar uma questão que atravessa
nossa prática profissional no ensino superior da música, ou seja, a polêmica
separação entre teoria e prática, e o conseqüente antagonismo entre teóricos
e práticos. Os práticos, convictos de que a teoria na prática é outra,
e, portanto, dispensando a presença da teoria no âmbito do ensino de música, ou
destinando-lhe um papel ornamental, ou, ainda, segundo alguns, um papel meramente informador,
contraposto a um papel formador, este, sim, desempenhado pela prática musical. Os
teóricos, por outro lado, muitas vezes bastante distanciados de qualquer fazer musical,
desdenham, freqüentemente, dos que buscam enfatizar apenas a prática, por considerarem
que, explicitamente ou não, há sempre uma teoria subsidiando toda atividade musical...
A polêmica certamente não é nova.
Raynor (1981), em seu livro História Social da Música, descreve uma disputa
semelhante, através de uma referência ao Musicus Curiosus - uma peça cômica do
século XVII. Em uma taberna, dois tipos de músicos gozam de suas horas de folga e
discutem sobre quem vai pagar a próxima rodada de cerveja, uns vangloriando-se de poder
tocar qualquer coisa de ouvido tão logo guardem a melodia na memória, e menosprezando os
outros que não podem fazer nada se não tiverem a partitura diante deles. As raízes da
questão parecem ser bem antigas...
Mais recentemente, contudo, Brahms
dizia que para tornar-se um bom músico era preciso empregar tanto tempo lendo quanto
estudando piano. É com esta citação de Nicolaus Harnoncourt (1984) que iniciamos,
aqui, nossa reflexão sobre o tema proposto, direcionando-o para o ensino superior de
música, e com a certeza de que essa afirmativa não goza, ainda hoje, de aceitação
unânime entre os músicos, nem entre os professores de música. Até mesmo porque a
pretensa dicotomia entre teoria e prática ainda faz parte da convicção de
muitos professores e músicos - aliás, mais que dicotomia, há uma razoável
disseminação de uma crença em um verdadeiro antagonismo entre teoria e prática
musical, ou seja, entre o discursos sobre música e o discurso musical.
Gostaríamos, contudo, de propor uma
ampliação da expressão discurso sobre música que, de certa forma, pode parecer
sugerir um distanciamento entre teoria e prática. Parece-nos interessante acrescentar,
aqui, a concepção discurso de música, como equivalente de conhecimento,
correspondendo, segundo Marilena Chauí (1980), com base em Lefort, à apropriação
intelectual de um certo campo de objetos materiais ou ideais - no caso, a música.
Esclarecendo melhor essa diferença que
Chauí descreve: o discurso de é conhecimento, o discurso sobre é
pensamento, este não se apropria de nada, é um trabalho de reflexão que se esforça
para acolher e compreender uma experiência. O discurso de está inseparavelmente
comprometido com a prática, o discurso sobre reflete sobre ela...
Tomando de empréstimo a Chauí essa
distinção, entre discurso de e discurso sobre, cabe formular duas
perguntas:
1) O que, no âmbito deste encontro,
estamos chamando discurso sobre música - pensamento ou conhecimento? (Ou alguma
outra concepção?)
2) Que tipo de pensamento ou de
conhecimento temos elaborado sobre a atividade musical no ensino superior de música, de
forma a não perder a articulação entre essas suas instâncias - teoria e prática -
que, equivocadamente, são constantemente separadas?
Em trabalho que apresentei, em 1994, no
Encontro Anual da ABEM, tomei como estudo de caso os currículos do Imperial
Conservatório de Música, do Instituto Nacional de Música, da Escola Nacional de Música
da Universidade do Brasil e da Escola de Música da UFRJ, numa observação comparativa, a
partir de dois referenciais teóricos: as concepções de inovação que Saviani (1989)
identifica e as concepções de currículo que Domingues (1986) descreve.
A conclusão a que esse trabalho chegou
é a de que os currículos das instituições analisadas não diferem essencialmente, mas
apenas superficialmente, constituindo o que Saviani caracteriza como inovação
periférica, superficial, coerente com uma concepção humanista tradicional da
educação. Todos os currículos analisados, por outro lado, encaixam-se no modelo
técnico-linear, segundo descrição de Domingues, ou seja, sua preocupação principal é
com a habilitação técnica, com a preparação eficiente de indivíduos para o
desempenho de funções específicas em uma situação definida.
O conceito de mistificação
pedagógica que Charlot (1977) tão bem desenvolve, e que se baseia na explicação do
fracasso ou do sucesso na educação exclusivamente pelas diferenças de dom ou de aptidão,
está, de certa forma subjacente àqueles currículos e, por sua vez, até mesmo
explicitamente, como no decreto de criação do Imperial Conservatório e em outros
documentos das instituições citadas.
Basta lembrarmos que, no documento em
que Francisco Manuel da Silva pleiteia a criação do Conservatório, ele objetiva
atrair pessoas de um e de outro sexo, nas quais se reconheça disposição e talento
para a música. Expressões como talento, dom, dom divino aparecem
com freqüência em documentos do Conservatório e do Instituto Nacional de Música.
Certamente, que essas características
curriculares não se aplicam só ao caso aqui tomado como exemplo, mas, em média,
representam a situação predominante nos currículos superiores de música no Brasil -
ressalvados, naturalmente, esforços e exceções pontuais.
Concepções mais atuais de educação,
como a de Brameld (1980), que enfatiza a importância das relações entre educação e
cultura, não têm sido suficientemente absorvidas em nossos debates sobre o ensino. E
sobre isto, se considerarmos a artificialidade de tomarmos cultura como um todo
homogêneo, e o pouco reconhecimento que temos dado à concepção de pluralidade
cultural, o fato se torna mais grave. O eixo mestre de nosso repertório e de nossa
prática musical ainda é o repertório de obras e de concepções musicais do período
barroco-clássico-romântico (europeu), período que certamente nos legou preciosidades
musicais; contudo, não se pode restringir a ele a história da música. A ausência de
discurso de e sobre tais práticas tem permitido sua cristalização, tem
minimizado a participação das culturas brasileiras no ensino superior de música e tem
conduzido a uma prática, freqüentemente, alienada, que incessantemente se reproduz,
transformando idéias particulares (como a de música erudita, ou a de música clássica)
em universais abstratos, pretensamente válidos para todos os membros de uma
sociedade.
É certo que essa dicotomia de que aqui
tratamos não é nova nem específica da área de música. Sabemos que o pensamento e o
conhecimento ocidentais, de um modo geral, se estruturaram em bases dicotomizadas -
trabalho mental e trabalho manual, fazer e pensar, técnica e arte, etc. ... A questão,
portanto, não é a de nos responsabilizarmos por essa concepção de conhecimento e por
essa visão de mundo fragmentada, mas de perguntarmos o que temos feito ou o que podemos
fazer em termos de que essa problemática se elabore como conhecimento, como discurso de
música e de músicos, possibilitando um avanço ao ensino superior de música,
estabelecendo uma relação dialética entre teoria e prática, instâncias que são, na
verdade, inseparáveis, ainda que distintas.
Como chegar a uma prática
interpretativa consciente e fundamentada se não enraizada em conhecimentos teóricos
diversos, inclusive de natureza histórica? Como termos acesso a um repertório de música
antiga sem a exaustiva pesquisa musicológica que tem permitido sua revelação? Como
revelar e reconstituir esse repertório sem um conhecimento prático de música?
Como avaliar, sem preconceitos, as diferenciações, inclusive qualitativas, estabelecidas
entre música popular, folclórica e erudita, categorias essas que
permeiam, de muitas formas, a pesquisa etnomusicológica? São inúmeras as questões que
poderíamos aqui levantar, assinalando a interdependência inquestionável entre os
discursos de música e sobre música e o discurso musical.
A concepção de currículo oculto
pode nos fornecer referencial para alguns avanços numa análise mais aprofundada do
ensino superior de música. Na verdade, a teoria do currículo oculto procura ressaltar as
entrelinhas dos currículos explícitos, demonstrando que, freqüentemente, a maior carga
de valores é transmitida exatamente pelo que não é explicitado, pelo que não é dito.
Assim, se nossos currículos fragmentam e desarticulam o conhecimento musical global, ou
seja, o conhecimento musical, de e sobre música, mesmo que isso não seja
corroborado por todos os professores, é exatamente assim que será apreendido pelos
estudantes. Se nossos currículos enfatizam ou se centralizam quase exclusivamente no
sistema tonal, em detrimento de outros, como o modal, cuja história é infinitamente mais
duradoura que a tonal, é dessa forma que os estudantes irão construir seu conhecimento
musical, a ponto de, muitas vezes, não serem capazes de perceber ou compreender uma
construção musical modal ou serial.
A concepção de uma música
universal, superior qualitativamente, tem atravessado nossos currículos, e sem um
discurso de música e sobre música, como transcendê-la?
Quem está habilitado a empreender essa
discussão no âmbito do ensino superior de música são os músicos - sejam eles
professores ou alunos, estejam eles empenhados em pesquisar, tocar ou compor, A
dicotomização e o antagonismo entre nossas práticas não pode gerar nenhum avanço e,
portanto, a quê ou a quem servem esses antagonismos? Não à qualidade do
ensino...
Por outro lado, um dos antagonismos que
citamos no início deste trabalho, o que opõe formação e informação,
apenas encobre uma discussão mais profunda e fértil, entre as concepções de educação
segundo uma visão humanista e segundo uma visão tecnocrática, entre os fins da
educação e os seus meios...
Acho oportuno, aqui, reproduzir um
trecho em que Marilena Chauí (1980) aborda essa questão:
Parece-me um tanto duvidosa a
oposição formação/informação e aprendizagem/treinamento, não porque quem forma
informa e quem ensina treina, mas porque, ao contrário, informar já é também uma
maneira determinada de conceber a formação, assim como treinar já é uma maneira
determinada de conceber o aprendizado. Os termos não são dicotômicos e opostos, mas
complementares.
Essa referência a Chauí pode
reportar-nos, prontamente, a refletir sobre como os cursos superiores de música têm
buscado superar ou afirmar em seus currículos essa falsa dicotomia entre formação e
informação, e que reflexos disso aparecem nos músicos que saem das universidades...
Em minha tese de doutorado, busquei
elaborar um conjunto de diretrizes curriculares para os cursos superiores de música a
partir de uma concepção dialética da educação, pois essa concepção aborda,
necessariamente, o ensino voltado para um homem concreto, articulado com um contexto
social específico.
Além disso, parte de uma concepção
totalizante de homem e de música, não dando espaço ao conhecimento fragmentário nem à
desarticulação entre prática musical e reflexão.
As diretrizes para um currículo
concebido em bases dialéticas, segundo a tese que defendi, privilegiam três vertentes
articuladas - a ação (criadora, política, artística, social), a reflexão
(fundamentada e inovadora), a produção de conhecimento (musical e musicológico). O
cerne, portanto, dessa proposta seria a produção de música e de reflexão sobre música
enraizadas na contemporaneidade musical, em suas múltiplas facetas.
O objetivo desta referência à minha
tese não é o de apontá-la como a solução para o ensino de música (até porque
não há uma única forma de conceber alternativas aos nossos currículos atuais), mas a
de ressaltar a importância de não nos contentarmos com a concepções técnico-lineares
que, desde os tempos do Imperial Conservatório, norteiam o ensino de música, na maioria
dos casos.
Além disso, é importante ressaltar que
nem mesmo o ensino concebido em bases dialéticas pode superar a diferença que existe
entre discurso musical e discurso de ou sobre música... na verdade, são
linguagens diferentes que não podem ser unificadas, mas podem e devem ser
indissoluvelmente articuladas, se se pretende um conhecimento não fragmentário.
Afinal, se o objetivo maior da
Universidade é a produção de conhecimento (e não a sua mera reprodução ou a sua
cristalização), é essencial que a área de música assuma essa tarefa em plenitude, o
que só é possível se superarmos as falsas dicotomias a que nos temos acostumado.
Se deixarmos falar o silêncio - as
lacunas, as entrelinhas de nossos currículos - talvez tenhamos o ponto de partida para
essa superação, pois, mais uma vez citando Marilena Chauí (1980), a lógica
ideológica é lacunar, ou seja, nela os encadeamentos se realizam não a despeito das
lacunas ou silêncios, mas graças a eles. Que o silêncio e as lacunas, pois, de
nossas práticas e de nossos currículos, possam sinalizar, para nós, novos caminhos!
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