ANPPOM
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA

Educação Musical
Mesa Redonda
Tema: A Atividade Educacional como Fator de Interdependência entre os Discursos Musical e Sobre Música


A Teoria e a Prática sobre a Interdependência entre os Discursos
Musical e sobre Música.

Liane Hentschke

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Quando fui convidada para apresentar um trabalho nesta mesa redonda, me dei conta que detrás da pomposidade e eruditismo do tema, escondia-se a oportunidade de traçar algumas considerações sobre um tema um tanto quanto negligenciado por todos nós. Refiro-me à formação de músicos e educadores musicais em nossas universidades, sob dois aspectos: primeiro, com relação à dissociação existente entre o ensino de disciplinas teóricas e práticas de música, e; segundo entre a formação musical e pedagógica dos alunos de licenciatura. As considerações que serão apresentadas partiram de relatos e observações obtidas através de contatos com professores e estudantes de diversas universidades, professores de música das escolas de I e II graus, e alunos e professores do departamento onde atuo como docente.

Se de um lado presenciamos a organização de congressos e encontros nas nossas áreas, os quais versam sobre antagonismos semânticos do tipo: discurso musical vs. discurso sobre música, relações entre a prática vs. a teoria, o músico vs. o teórico sobre música, de outro constatamos que nossos departamentos e escolas de música estão repletos de práticas educacionais compartimentalizadas e mesmo descontextualizadas de uma realidade profissional que está do lado de fora das nossas salas de aula e departamentos. A falta de objetividade e de um claro diagnóstico de como encontra-se o ensino nas nossas universidades leva-nos a discutir questões alheias àquelas que vivenciamos no nosso dia a dia. De uma maneira ou outra, resta para a mesa de educação musical manifestar as questões educacionais vivenciadas por todos nós. No entanto, creio que a grande maioria, senão todos os presentes, atuam como docentes nos cursos de graduação e portanto não deveriam se eximir da responsabilidade de buscar soluções claras e objetivas para as questões referentes à formação musical dos nossos alunos.

A tendência da educação musical contemporânea aponta para um ensino unitário de música, desprovido da separação entre o fazer música e o falar sobre música, pois considera que ambos pertencem ao universo do conhecimento musical. A literatura sobre educação musical nos dias de hoje advoga que a única maneira de se chegar ao conhecimento musical é através dos parâmetros práticos da experiência, sem os quais o indivíduo não terá acesso à música propriamente dita.

Dentro desta linha, encontramos autores como Mills (1991), Swanwick (1979, 1988, 1994) e Taylor (1979), sem citar outros autores e inúmeros currículos de educação musical para o ensino de I e II graus, os quais evidenciam a necessidade de proporcionar às crianças e adolescentes que iniciam seus estudos musicais uma vivência equilibrada, não só referente aos parâmetros práticos (composição, execução e apreciação), mas também aos parâmetros teóricos (teoria, história e demais disciplinas complementares).Currículos de música para o I e II graus de alguns países como Estados Unidos, Inglaterra, Austrália e alguns poucos currículos brasileiros convergem para este tipo de abordagem pedagógica. O que se altera muitas vezes é a nomenclatura utilizada para denominar os parâmetros práticos, a exemplo do uso da palavra "criação" ao invés de "composição". No entanto, no que se refere ao princípio de que o conhecimento musical deva ser desenvolvido primeiramente através do contato direto com música, pouca ou quase nenhuma divergência é encontrada.

Teoricamente poderíamos imaginar que, no momento em que existe este discurso de integração por parte dos acadêmicos e mais especificamente dos docentes do ensino superior, a própria formação por eles fomentada estaria em concordância com seus princípios educacionais. Observa-se no entanto que a obviedade deste discurso existe somente em tese, pois na prática educacional a dissociação continua existindo nos cursos superiores.

Este fato, por mais surpreendente que possa parecer, não é um privilégio do sistema de educação superior brasileiro. Ao contrário, muitas instituições de ensino superior no exterior compartilham este tipo de problema e preocupação. Cito aqui a publicação de um dos volumes do British Journal of Music Education (1993, Vol. 10, No. 1, March), o qual foi inteiramente destinado à discussão da educação de professores de música e da educação musical de diferentes partes do mundo. Um dos aspectos levantados pelos editores deste periódico é de que, se a principal meta da educação musical é a de proporcionar uma vivência musical, "a prioridade de todos professores de música não deve ser meramente em saber muito sobre música, mas acima de tudo saber muita música" (p 3). E mais: "somente quando tivermos tido um encontro com a música a partir do seu interior, é que poderemos objetivá-la, discuti-la, pesquisar seus antecedentes, compará-la com outros exemplos e concluir qual irá fornecer a base para futuras explorações" (p 4).

Estas posições são complementadas por Jeanneret (1993), quando discute a educação de professores em New South Wales na Austrália. A autora menciona que, "apesar dos programas de II grau recomendarem uma integração das atividades de execução, composição e apreciação, a educação de professores a nível superior é em sua maioria baseada nos modelos de conservatório, os quais compartimentalizam os estudos de percepção execução e musicologia e praticamente negligenciam os estudos de composição" (p 47). Desta maneira a autora está constatando a existência de uma discrepância entre os processos de formação musical a nível prático e teórico dos professores, em contraposição ao discurso da reprodução integrada deste conhecimento a nível de I e II graus.

A nossa experiência diária como profissionais de ensino superior evidencia que os professores das mais diversas áreas de música acabam concentrando-se nas suas especialidades, muitas vezes ignorando o que está sendo ensinado na sala ao lado. É provável que este fenômeno seja decorrente do avanço do conhecimento e da conseqüente "clausura" que nos é imposta pela necessidade da super-especialização. Esta necessidade é manifestada pelas exigências por parte das Instituições de Ensino Superior de que os professores devam produzir conhecimento a nível de pesquisa, produção artística e intelectual. Como conseqüência, exige-se dos instrumentistas que sejam exímios concertistas, dos compositores que produzam literatura musical, dos musicólogos que produzam literatura crítica sobre aspectos teóricos e históricos musicais e finalmente exige-se dos educadores musicais, que sejam educadores, músicos, pseudo-psicólogos, sociólogos, filósofos, e sobretudo que pesquisem sobre os processos de desenvolvimento do conhecimento musical das crianças, dos adolescentes e dos adultos.

Esta corrida desenfreada em direção a manutenção e desenvolvimento do nosso conhecimento e competência faz com que tenhamos cada vez menos tempo de sair das nossas sub-áreas de conhecimento musical e nos atualizar com referência ao desenvolvimento do conhecimento de outras áreas. No entanto fazem-se necessários os seguintes questionamentos: primeiro, qual é o espaço reservado para a nossa atuação como docentes? (considerando o professor não somente como a pessoa que dispensa o conhecimento, mas como aquele docente engajado no processo de construção do conhecimento musical do seu aluno); segundo, quantas escolas de música e/ou departamentos estão desenvolvendo um processo de avaliação curricular nos seus cursos?; e por último, quantos docentes estão engajados em pesquisas sobre a viabilização da integração entre conteúdos teóricos e práticos?

O que se sabe é que para o professor de instrumento, o que interessa é que o aluno venha a ele sem problemas de "alfabetização" em termos de teoria e percepção, o mesmo que um professor de harmonia, análise e composição espera. Para o educador musical encarregado das disciplinas pedagógicas do curso de licenciatura, interessa saber se este aluno recebeu uma formação musical básica e suficientemente ampla para poder trabalhar as questões pedagógicas, estas muitas vezes contraditórias à própria formação recebida. No entanto, pouco se sabe sobre como o aluno está construindo o conhecimento musical que a ele está sendo fornecido.

Se analisarmos os nossos currículos de graduação, veremos que estão repletos de disciplinas há muitos anos tidas como "indispensáveis" à formação de um bom músico, ou como diria Jeanneret (1993, p 47), obedecendo o antigo "modelo de conservatório". Existem certos elementos que há muito tempo têm sido considerados como sendo de senso comum no momento de estabelecer um currículo de um curso superior de música. Podemos até ouvir vozes de professores defendendo idéias do tipo: "é óbvio que o aluno precisa saber ler, escrever, e perceber música" como também é óbvio que "o aluno precisa saber história para não confundir Bach com Schoenberg ou até com Shakespeare." "Quanto ao instrumento? Nem se fala, durante todo o curso".

Percebe-se que são poucos os professores que possuem consciência do fato de que no momento em que argumentamos a necessidade de incluir uma disciplina "X" ou "Y", estamos explicitando a nossa visão do que vem a ser um bom músico ou um profissional preparado para enfrentar o mercado de trabalho existente e emergente. Neste caso temos alguns exemplos clássicos desta falta de consciência sobre como e para quê estamos formando os nossos alunos. O primeiro refere-se à formação do Bacharel em instrumento, que, devido à falta de mercado de trabalho como músico, transforma-se em professor de instrumento sem nunca ter recebido uma formação pedagógica. O segundo exemplo está nas solicitações dos nossos currículos e súmulas por outras universidades, como se a organização de um curso fosse somente uma questão de grade curricular. Sabemos que as disciplinas de um currículo, são divisões arbitrárias de um corpo de conhecimento, o que não quer dizer que estas sejam passíveis de serem dispensadas de maneira isolada sem considerar o que está sendo ensinado na sala ao lado e muito menos sem saber se estas correspondem ao corpo de conhecimento necessário para a formação do profissional que desejamos preparar. Um terceiro exemplo de senso comum desprovido de reflexão manifesta-se claramente nos currículos que possuem a disciplina Música Popular Brasileira simplesmente para dispensar um arsenal de conhecimento teórico sobre música popular sem a preocupação se este aluno terá a oportunidade de vivenciar nas aulas práticas os processos envolvidos na composição e/ou execução desta música; isto sem falar de muitos cursos de música que ensinam história da música como uma relação de fatos históricos sem proporcionar a vivência nem ao menos da percepção musical. A este respeito, Terry (1995) oferece uma nova visão do ensino de história da música quando argumenta que no momento em que "pararmos de pensar em história em termos de teoria pura, e, ao invés, considerá-la em relação à prática, daí estaremos nos movendo de um estado de resignação cética em direção de possibilidades positivas" (p 33).

Estes são apenas alguns exemplos isolados de discrepâncias que ocorrem na formação musical dos nossos alunos. Até aqui nem ao menos fizemos alusão ao tipo de formação que os nossos alunos receberam antes de entrar na universidade, ou seja, à maneira com que eles foram introduzidos ao conhecimento musical. Mas isto seria um trabalho a parte e que escapa ao âmbito desta fala.

Concentremo-nos agora na formação do nosso licenciado. Este inicia seus estudos carregando consigo um estigma: o daquela pessoa que, por não possuir "talento" e não ter um domínio instrumental aceitável para cursar o bacharelado, é aceito no curso de licenciatura. Aqui se evidencia mais uma dicotomia - os que fazem música e os que ensinam música.

O processo de formação pedagógica de um licenciado se dá mais ou menos da seguinte maneira: recebemos o aluno que foi submetido a uma formação compartimentalizada entre as disciplinas teóricas e práticas e, na tentativa de nos mantermos fiéis aos nossos princípios teóricos, apregoamos que a educação musical de crianças e adolescentes deve ser trabalhada dentro de um princípio de integração entre os parâmetros práticos de composição, execução e apreciação fundamentados pelo estudo da técnica e literatura (utilizo aqui o modelo C(L)A(S)P citado por Swanwick, 1979). É neste momento que o aluno se depara com o primeiro conflito, ou seja, entre o seu processo de formação musical e o que ele aprende como sendo "apropriado" para fornecer no processo de educação musical de crianças, adolescentes e adultos. A sua visão compartimentalizada e estanque de certas disciplinas (composição/percepção, execução/percepção), faz com que ele sinta dificuldades em entender que todos estes parâmetros práticos podem ser trabalhados de maneira integrada. Sendo assim, as disciplinas pedagógicas além de se encarregarem do ensino de questões didático-pedagógicas, cumprem a função de desfazer esta visão compartimentalizada. Isto porquê acredita-se que se futuro o educador musical não tiver uma visão integrada do que constitui o conhecimento musical e qual o processo de aquisição deste conhecimento, ele tenderá a reproduzir o modelo compartimentalizado. Ele trabalhará a execução musical e os aspectos teóricos e históricos separadamente, como se não houvesse uma inter-relação direta entre eles. Infelizmente é isto o que acaba ocorrendo na prática, segundo nos mostra a experiência de supervisão de estágio. Apesar de todo o empenho por parte dos professores das disciplinas pedagógicas dos cursos de licenciatura em construir no aluno uma visão unificada do conhecimento musical, constatamos que o seu processo de construção do conhecimento musical acaba sobrepondo-se ao discurso de integração.

Apesar destes problemas, o aluno de licenciatura é um dos poucos privilegiados dentre os estudantes de música, pois durante a sua formação superior ele tem a oportunidade de rever certos pressupostos educacionais, o que não acontece nos cursos de formação instrumental, ou nos bacharelados em geral como mencionado anteriormente. Isto de certa maneira não exclui a possibilidade do futuro professor não conseguir estabelecer as inter-relações necessárias.

Conclui-se, sem maiores pretensões, com os seguintes questionamentos: primeiro, por que negligenciamos certos problemas que estão diante de nós, no dia a dia da nossa prática profissional, e direcionamos convenientemente nossas atenções para questões fora das nossas salas de aula? Segundo: até que ponto a busca de uma integração entre as mais diversas áreas pode parecer ameaçador, no sentido de que teríamos que refazer a nossa maneira de pensar, nossos princípios educacionais e até as concepções acerca do que consideramos ser um indivíduo musicalmente educado?

Conscientes ou não destas duas questões acima colocadas, constata-se que a curto ou a longo prazo, não vemos outra alternativa que não iniciar um processo de avaliação dos nossos cursos, talvez como uma extensão do PAIUB. Este processo poderia ser em forma de pesquisa ou seminários, onde o corpo docente de cada departamento ou escola de música estivesse envolvido e comprometido com o processo de reflexão e mudança do padrão de ensino atual. O que ensinamos e como ensinamos nos cursos de graduação irão refletir-se diretamente no ensino musical em nível de I e II graus e de pós-graduação.

Como profissionais do ensino de graduação e pós-graduação temos o dever de produzir conhecimento, levá-lo à sociedade, e sobretudo mediar o processo de aquisição do conhecimento dos nossos alunos de maneira consciente e responsável pois é na nossa atividade docente que encontramos a base do tripé, ensino, pesquisa e extensão.

 Referências Bibliográficas

JEANNERET, N. "The preparation os secondary music teachers: old problems, new insights and possible solutions". British Journal of Music Education. Vol. 10 No. 1, 47-56, 1993.
MILLS, J. Music in the primary school. Cambridge: Cambridge University Press. 1991.
PAYNTER, J. & SWANWICK, K. "Teacher education and music education: an editorial view" British Journal of Music Education. Vol. 10 No. 1, 3-8, 1993.
SWANWICK, K. A basis for music education. London: Nfer-Nelson, 1979.
SWANWICK, K. Music, mind, and education. London: Routledge, 1988.
SWANWICK, K. Musical Knowledge: Intuition, Analysis and Music Education. London: Routledge. 1994.
TAYLOR, D. Music Now. Milton keynes: The Open University Press. 1979.
TERRY, P. "Accommodating the history of music within the National Curriculum". British Journal of Music Education. Vol. 12 No. 1, 29-44, 1995.

 

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