ANPPOM
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA

Educação Musical
Mesa Redonda
Tema: A Atividade Educacional como Fator de Interdependência entre os Discursos Musical e Sobre Música


Aspectos da Mediação entre os Discursos Musical e sobre
Música na Prática Educativa

Irene Tourinho

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Neste trabalho discuto algumas idéias a respeito do discurso sobre música como mediador do processo de compreensão do discurso musical na atividade de educação musical. O tema permite a identificação dos significados de "discurso" com "linguagem" e formas de comunicação. Permite, também, a identificação de "discurso" com "objetos", no sentido de obras prontas ou em construção e com práticas, no caso da performance musical. Parto destes entendimentos e penso como educadora, olhando para a escola regular e imaginando algumas possibilidades de conexão entre o discurso musical e sobre música.

A idéia de que o discurso é uma prática inegável da educação, seja na forma de linguagem ou de comunicação, comanda estas reflexões. Distingo algumas características do discurso, indicando paralelos entre ele e o discurso musical, pensando ambos como parte da educação. Discuto estas características entendendo-as como condições para uma articulação eficiente entre o discurso sobre música e o discurso musical na prática educacional. Concluindo, explicito o que entendo ser a especificidade da educação musical em relação a esta articulação entre discursos.

Algumas características dos discursos na educação

Temos como "premissa já familiar", que a linguagem é o "meio de troca através do qual a educação é conduzida" (Bruner, 1986:121). Dificilmente seríamos capazes de imaginar uma situação de sala de aula onde nenhum tipo de discurso verbal ou escrito acontecesse. Reforçando esta evidência, causa-nos impressão saber da existência de um professor mudo e apenas em raríssimas situações encontramos casos deste tipo. A constância do discurso na educação já virou parte do nosso anedotário, quando dizem que o "professor é aquele profissional que adora a própria voz". Porém, a inegável existência e quantidade de discurso presente na educação não é garantia de uma condução eficiente do processo educacional.

Vamos supor, inicialmente, que ao falarmos em discurso sobre música tivéssemos que nos limitar a pensar apenas na linguagem escrita ou falada. Para reduzir ainda mais as possibilidades, poderíamos excluir desta categoria de linguagem escrita ou falada aquelas formas que, como a poesia ou o conto, também podem ser sobre algo - como, por exemplo, a música - sem deixarem de ser sobre elas mesmas. Concentrando dessa maneira a concepção de "discurso sobre música", estaríamos transitando quase que apenas no âmbito reduzido da linguagem técnica e instrumental. Esta parece ser a forma de discurso mais comumente encontrada na escola. Poderíamos dar outros nomes para este tipo de linguagem, mas importa-nos diferenciar, neste momento, uma linguagem voltada para o aprendizado circunscrito a limites preestabelecidos de disciplinas e de alunos, das linguagens poéticas ou simbólicas, sobre as quais este rótulo já é motivo de polêmica.

Partindo desta perspectiva mais restrita, algumas características da linguagem são fundamentais para entendermos como o discurso sobre música pode mediar a compreensão do discurso musical. O discurso musical, por sua vez, foco inegável da educação musical, também divide, com o discurso sobre música, certas propriedades que estas características apontam. Primeiro, observamos que por mais técnica, instrumental ou funcional que seja, a linguagem nunca é neutra. Como diz Bruner (1986), ela "impõe um ponto de vista não apenas sobre o mundo a qual se refere mas sobre o uso da mente a respeito desse mundo" (p.121). O discurso musical, como já disseram, é facilmente corruptível: pode servir a funções e causas muitas vezes contraditórias. Segundo, sabemos que as palavras têm a capacidade de explicar, de afirmar e finalmente de congelar determinadas realidades. A linguagem pode, então, "não apenas facilitar mas também limitar aquilo sobre o que se comunica" (Froehlich e Cattley, 1991:244). Também o discurso musical, numa medida talvez menos analisável, pode afirmar ou congelar determinadas formas de fazer e experimentar música.

Uma terceira característica da linguagem, essencial na educação, baseia-se na observação de Gombrich (1989) de que "toda comunicação consiste em ‘fazer concessões’ ao conhecimento da pessoa que a recebe" (p.201). Nesse sentido, lembrando Lee Whorf, Gombrich ressalta "que aquilo que a linguagem faz não é dar nome a coisas ou conceitos preexistentes, mas articular o mundo da nossa experiência" (p.78). A forma como os discursos musicais são construídos demonstra, também, diferentes articulações entre estes discursos e as experiências sonoras que os indivíduos podem e querem receber.

Outra característica da linguagem que encontra paralelos na música é a referência cultural e histórica que ambos os discursos carregam. Só quando podemos compartilhar de um certo conjunto dessas referências é que nos habilitamos para compreender e inferir valores sobre estas manifestações. Por último, parafraseando o dito popular, lembramos que "mil palavras não valem uma música", salientando a característica das obras de arte como algo que sempre excede e extrapola os discursos sobre elas. Ao mesmo tempo, as obras de arte também não se esgotam em si mesmas - porque sempre se pode fazer e dizer algo mais sobre e com elas - e porque este "fazer e dizer algo", dá-se através de discursos que sempre apresentam diferenciados níveis de ambigüidade e de arbitrariedade.

Estas cinco características paralelas entre o discurso sobre música e o discurso musical formam a base de mediação sobre a qual penso o processo de educação musical. Mais que reconhecê-las, imaginar as possibilidades que elas indicam e cerceiam é condição para uma articulação educacionalmente eficiente entre estes discursos. A educação musical, certamente, não se restringe a apenas estas condições que este tema de hoje faz aparecer. Ao mesmo tempo, o ideal seria poder tratar estas características e paralelos naquele espaço imaginado e real onde elas se encontram. Entretanto, fragmentá-las agora é uma fatalidade que serve para mostrar certas implicações desta articulação entre discursos para a educação musical.

Para construir estas reflexões, teremos que nos distanciar, pouco a pouco, daquela concepção restrita de discurso que serviu para indicar as características que passarei a discutir. Aos poucos enfrentaremos questões inevitáveis, tais como: (1) que nenhuma forma de discurso, sozinha, pôde ainda se gabar de ser voz total do discurso musical; (2) que nosso divertimento, como pesquisadores, é encontrar significados, o que nos leva a concluir que não criar discursos sobre música é deixar grande parte do que é música condenada a não significar.

Os discursos e a educação musical

Voltando à primeira característica, a diversidade de usos e funções dos discursos sobre música e musical exigem não apenas uma interdependência entre eles mas, principalmente, que se articulem com a função educativa a que servirão. É neste sentido que afirmamos que estes discursos, especialmente na escola, não são neutros. Um professor pode, por exemplo, querer conhecer o tipo de discernimento que o aluno tem sobre um determinado discurso musical. Tanto pode ser um discernimento relativamente sofisticado, como sobre estilo ou gênero, quanto um discernimento mais simples, como variações de andamento, ou de movimento melódico. Pode ser, ainda, uma curiosidade apenas aberta, exploratória, do professor sobre o conhecimento do aluno.

O objetivo de uma atividade como esta encontra-se mais próximo do desejo de querer saber, ou seja, de pesquisar, que de ensinar. A sistematização, organização e documentação desta atividade poderia configurá-la como pesquisa. Infelizmente, a necessidade desta prática é bem mais evidente que sua presença na educação. O discurso sobre música que acompanharia uma atividade como esta seria, provavelmente, o menos intrusivo possível. De início, talvez ele não falasse diretamente sobre a música, mas pela música. Seria dizer: Como me ouve? Como me reconhece? Neste exemplo toma-se a música, de alguma maneira, como um discurso quase que antropomórfico que tende a agir como se falasse por si própria.

O resultado do discernimento que o aluno apresentasse, discursivamente, poderia ser sobre a música mas, poderia ser, também, sobre a experiência deste aluno com aquela música, naquela situação. Quando o discurso é sobre a experiência do indivíduo com a música, este discurso diz também alguma coisa sobre a música. Isto é, os discursos nunca serão puramente subjetivos ou objetivos. O discurso da experiência de um indivíduo com a música não será necessariamente algo aplicável na educação, no sentido de que a escola usará este discurso para ensinar música. Porém, será aproveitável como mais um testemunho de relação indivíduo-música, de onde partem as orientações para este ensino. Esta característica de não-neutralidade do discurso e da música pressupõe, então, que há sempre uma perspectiva que qualifica o discurso e uma forma de ação sobre e/ou com a música que acompanha este discurso.

Sob esta mesma característica, a articulação entre o discurso sobre música e o discurso musical no ensino pode ser motivada pelo objetivo - não de querer conhecer o tipo de discernimento que o aluno tem - mas de levá-lo a um tipo de discernimento mais ou menos específico. Neste caso, parece que usaríamos um discurso intencionalmente direcionado, mas que só teria sentido quando se articulasse, de uma maneira gradativa e retomável, com outros discursos sobre música - ampliando e conectando focos de discernimento - e com outros discursos musicais - relacionando e contextualizando cada foco num conjunto maior de produções musicais.

As possíveis opções de usos e funções da música e do discurso sobre ela já demonstram que estamos lidando com linguagens e produtos, isto é, com práticas plurais. Esta essência plural e, principalmente, a condição prática que faz a existência de ambos os discursos, revela a capacidade que têm para explicar, afirmar e congelar realidades. Têm, ainda, capacidade de promover transformações, mas elas acontecem por meio de novas percepções, explicações e entendimentos da realidade.

Esta "capacidade", apontada acima como segunda característica, revela, em síntese, o poder destes discursos. Por mais complicado que seja definir, descrever, qualificar ou demonstrar como este poder opera, a existência dele é amplamente reconhecida. O que às vezes nos esquecemos é que este poder está inclusive no discurso chamado "contra-poder". Esta pregnância do poder já virou advertência: "quanto mais livre for (...) o ensino, tanto mais será necessário indagar-se sob que condições e segundo que operações o discurso pode despojar-se de todo desejo de agarrar" ( Barthes, 1989:10). Talvez possamos trazer para esta análise dos discursos, algumas idéias de Roland Barthes (1989) sobre literatura1 Segundo ele, a literatura tem três forças: (1) a de assumir muitos saberes; (2) a da representação, e (3) a do jogo. As afirmações que Barthes faz a respeito destas forças permitem recolocá-las neste contexto específico em que se evidencia a articulação entre o discurso sobre música e o discurso musical.

Não há aqui a intenção de identificar estas análises e nem de "semiologizar" esta reflexão, assunto que desconheço; mas de tentar uma analogia para esta discussão sobre a interdependência de discursos aqui proposta, salientando a característica de poder que identificamos anteriormente. Em relação à primeira força, Barthes (1989) afirma que "a literatura não diz que sabe alguma coisa, mas que sabe de alguma coisa; ou melhor: que ela sabe algo das coisas - que sabe muito sobre os homens" (p.19)2. Serve-nos nessa afirmação, a consciência de que tanto as músicas quanto os discursos "carregam" muito do que identificamos como humano, como nosso. Drama, ironia, razão, ódio ou desejo, são "imortalidades menores" - como disse Jorge Luis Borges, em torno das quais as artes, e também a música, sempre "assumiram" algum saber. Articular música e discurso não é suficiente para desvendar esses saberes, mas é tentativa infinda de pelo menos confrontá-los.

Na educação, os "muitos saberes" das músicas e de discursos sobre elas formam a experiência do aluno quando as articulações entre discurso musical e discurso sobre música são ampliadas. Pretende-se uma prática que busque articulações entre discursos sobre música, entre discursos musicais e entre uns e outros. Esta ampla e trifurcada articulação não esvazia o poder destes discursos. Deseja-se evitar que qualquer tipo de discurso, isoladamente, venha a se estabelecer como poder.

A segunda força, a da representação, parece ser, em relação à música, a mais polêmica de todas. Barthes fala da representação do real, admitindo que este real seja mesmo o impossível - o não representável - e imaginando a literatura como produto da nossa recusa em aceitar que não há paralelismo entre o real e a linguagem (p.22). No caso da música, encontramos aqueles que questionam a relação entre música e representação, afirmando que "a música tem (...) essa faculdade de se afastar completamente, e à partida, do registro da representação" (Seixo, s/d, p.13). Outros criam condicionamentos para esta vinculação música-representação, colocando-nos, às vezes, diante do problema de distinguir ou semelhar representação e significação (Nattiez, s/d; Levinson, 1990).

Para a educação musical, penso simplesmente numa conceituação de representação que não se baseia apenas naquilo que pode ser apreendido pelos sentidos, mas também possa ser apreendido pela imaginação, pela memória ou pelo pensamento. Diante destas possibilidades, a apreensão do discurso musical pode valer-se, igualmente, da percepção imediata que os sentidos possam oferecer; de um discurso onde a imaginação mobilize a atenção e concentração; da memória que reviva ou reforce identificações e vivências sonoras, ou de idéias e reflexões que motivem uma experimentação de - ou do - discursos sonoros. Se todos estes caminhos são possíveis, temos, portanto, a força da representação e a educação pode usá-la para que músicas e discursos sejam compreendidos, fruídos e desejados.

Chegamos na força do jogo. Ela se insere exatamente nestas possibilidades de aproximação em que, na medida que música e discurso se distanciam, entra em jogo, não só uma lógica construída a partir de informações e campos de conhecimentos bastante diversos, mas também a paixão daqueles que têm a ousadia de enfrentar caminhos não ortodoxos para buscas nem sempre convencionais. O jogo enfrenta o poder testando seus limites. A educação institucionalizada, de saída, manipula com um poder que nem sempre se explicita. A música e os possíveis discursos sobre ela, quando experimentados neste tipo de instituição, podem expor sua própria fragilidade. Isso porque os saberes que a música assume, as formas de representação que ela permite e os jogos que é capaz de articular, interferem e ultrapassam aquilo que a instituição negocia como poder e saber. Talvez esta seja uma explicação para o fato de que as escolas raramente "assumem" o ensino de música, mesmo fazendo dela, sempre que necessário, uma das suas formas de representar-se como instituição.

A terceira característica citada acima, de que toda comunicação consiste em ‘fazer concessões’ ao conhecimento da pessoa que a recebe, é fundamental para a pedagogia, mas não se pode separá-la da questão do poder. Fazer concessões é uma condição para não se tornar um discurso do poder. Na escola, muitas concessões são necessárias. Por exemplo: os usos e as funções dos discursos devem sempre se encontrar com os alunos, primeiro como coletividade. O poder dos discursos sobre música e musicais não devem, em nome de uma falsa concessão, escravizar os discursos que os alunos sabem e podem compreender.

Muitas vezes, porém, a música na escola transpõe as fronteiras da concessão, degradando-se. Por exemplo: limitar-se apenas ao discurso musical que é relevante para os alunos não significa fazer concessão, mas ignorar que a música também cria experiências. Aceitar o registro sonoro de uma infinidade de canções, como se fosse aprendizagem, é decretar "estado de sítio" para a compreensão do discurso musical. A degradação dos discursos sobre música na escola também tem seus exemplos. Perguntar aos alunos: "Que música é esta?" e bater o ritmo de uma conhecida melodia, não é uma concessão ao tão presente prazer da descoberta. É, antes, desprezar a necessária discriminação auditiva e conceitual que faz parte do entendimento do discurso musical. Defender a música na escola sob os argumentos de que os alunos adoram cantar, de que a música libera as tensões individuais, ou porque a música torna os alunos mais sensíveis, é reafirmar discursos que negam a função da escola, do professor, do aluno e do conhecimento musical.

Estes discursos podem parecer datados, já ultrapassados. Antes fossem. Ao citar as referências culturais e históricas como quarta característica dos discursos sobre música e musicais, não pretendi enfatizar esta questão do discurso escolar sobre música ou do discurso musical na escola. Mas esta perspectiva também tem lugar aqui. Em outro trabalho comento, com mais detalhe, a forma como a escola mantém um discurso infantilizado, adocicado, terapêutico ou puramente recreativo para falar de música e para conduzir as experiências dos alunos com a música.3 Mantém, ainda, um repertório "escolar", como se fosse possível acreditar na existência de um ouvido inocente ou virgem. Entretanto, o foco nas referências culturais e históricas do discurso musical e sobre a música na educação liga-se especificamente ao processo de compreensão do discurso musical. São justamente estas referências que vão criar as relações entre conhecer, produzir e refletir sobre estes discursos.

Com base nestas referências, o discurso sobre música e musical utiliza-se de uma linguagem construída a partir de vivências comuns instaladas num certo contexto e época. Há, contudo, lógica e paixão nestes discursos. Há lógica, por exemplo, na construção do discurso musical onde Chico Buarque canta "Ah!, se já perdemos a noção da hora, se juntos já jogamos tudo fora, me diga agora como hei de partir". O persistente cromatismo da melodia apresenta uma construção lógica - e apaixonante - rapidamente verificável; porém, os desvarios da paixão - e sua lógica - inserem aqui e ali inúmeras tensões e surpresas - talvez os desvios e resistências de expectativas sobre os quais Meyer (1956, 1967) teorizou - que oferecem ao ouvinte insinuações que vão qualificar a compreensão e valoração da música.

Há, muitas vezes, um elevado grau de subjetividade no discurso sobre música, especialmente quando não pretendem desmontar a música em unidades, mas aprofundar a relação aluno-música. Durante muito tempo, este discurso não pretendeu ser científico, quase se desculpava em apresentar-se como filosófico e continua tímido como pedagógico. Porém, ao mesmo tempo que a ciência positivista debilitava-se, a dose de verdade das especulações do sujeito se impunha e, com ela, o incômodo do incerto e da dúvida presente nas teorizações. Se, por um lado, a questão da subjetividade desafia as imposições rígidas de objetividade, por outro, dá ao discurso sobre música a possibilidade de unir lógica e paixão, fazendo delas as balizas da adequação do discurso à música e vice-versa.

Tanto os discursos sobre, quanto os musicais, se reconstroem a partir da cultura e do tempo em que são criados. Estas transformações podem levar à produção de discursos bem variados, às vezes até excêntricos. Os tratamentos dispensados à vida e obra de Mozart são exemplos dos mais relevantes, tanto pela quantidade de textos produzidos sobre o assunto, quanto pela sua diversidade. Uma reportagem recente da revista The Economist (v.336, n.7924, 1995), comenta como "cada era produz uma biografia de Mozart adequando-o ao tempo em que é produzida" (p.80). Numa biografia de 1938, Mozart é interpretado a partir de suas "imaginadas qualidades transcendentes, como se ele tivesse surgido de uma outra esfera" (p.80). O autor usa o nome Amadeus como ponte entre Mozart e a divindade.

Na década de 70, uma interpretação da figura irreverente, inconformada e espontânea do músico, serve para chamá-lo de "o Mick Jagger do seu tempo" (p.80). Já numa obra recente, avaliada como fruto de formidável quantidade de pesquisa, a análise da vida do compositor é plantada nos princípios da psicologia freudiana. A reportagem ressalta como estas visões de época, estas reconstruções de perspectivas, acompanham os discursos sobre o mundo da música e as própria músicas. O autor deste encontro Freud-Mozart argumenta que "o pequeno Mozart teria se transformado num instrumento da ambição paterna" e que Leopold nutriu o gênio do filho, para "triunfar sobre as figuras de autoridade que lhe causaram ressentimentos durante toda vida". Entre outros dados, encontramos uma carta de Leopold onde ele escreve: "O sucesso e a fortuna de Wolfgang são nosso maior revanche" (p.81).

As fixações e conjecturas dos que produzem discursos e música, como comenta o autor desta biografia psicanalizada, confundem-se com referenciais mais amplos e contextualizados. Os tipos de compreensão sobre música que estes discursos oferecem, nem sempre são diretamente aplicáveis ao ensino de música, principalmente na escola de 1o grau. Porém, cabe na formação de qualquer indivíduo, tanto uma porcentagem de afirmações e realizações de expectativas, como de vivência e ampliação de possibilidades de relacionamento com o fenômeno musical. Neste sentido, não poder tratar diretamente certos discursos não deve significar ignorá-los. De alguma maneira pedagogicamente honesta e útil - como diria Bruner - estes trabalhos devem interferir na postura do professor e no ensino musical.

Às vezes, a experiência com releituras de discursos musicais é um caminho educativo para compreender como a cultura e a história vão lapidando nossa sensibilidade, razão e formas de expressão. Por exemplo, confrontar "Quadros de uma exposição" no original de Mussorgsky, com a reorganização sonora que o grupo Emerson, Lake and Palmer faz da mesma peça, quase cem anos depois, é ampliar a experiência, preservando e reconstruindo a música. Muitos desses exemplos poderiam, então, conduzir ao entendimento de que, tanto a prática musical quanto a discursiva são múltiplas e transformáveis, mesmo aquelas de uma determinada cultura e época. Estas experiências também nos ajudariam a encontrar, simultaneamente, formas variadas de tratar a música e música variada para lidar com diversos tipos de discursos.

Chegamos à última característica que identificamos para tratar este tema. A evidência primeira desta característica - da inesgotabilidade de ambos os discursos - fica demonstrada com a realização desse encontro. Não estaríamos aqui para falar de articulações entre discursos, se estivéssemos fadados a repetirmo-nos uns aos outros. Temos a clara consciência de que os discursos sobre música não tem a pretensão de ser uma solução para os enigmas da música. Podem pretender, no máximo, a ser uma declaração da existência de mais um ponto de equilíbrio na ambigüidade e plurivalência inevitáveis que caracterizam ambos os discursos.

É provavelmente por causa destas incompletitudes e ambigüidades, às vezes apenas sentidas e não dissecáveis, que travamos, como diz Castello (1995) esta "luta milenar e sem fim do instinto contra a sistematização. Luta, no fim das contas, sem a qual nenhuma das partes pode sobreviver - como o homem atado eternamente a sua sombra" (p.124). Esta inesgotabilidade das artes e, portanto, de todas as formas de discursos que elas podem provocar, não as faz sobre-humanas ou extraterrestres. Ao contrário, conforme comenta Hannah Arendt (1988), "as artes, por ficarem no mundo por mais tempo do que tudo mais, são o que existe de mais mundano entre todas as coisas" (p.261/2). É justamente esta insubordinação mundana da música que desencadeia tantos desejos de articulações com, sobre, para e a partir da música.

Não há necessidade de argumentar aqui sobre esta característica de inesgotabilidade da música e dos discursos. A dificuldade de explicar definitivamente o porquê desta característica só reforça a permanência desta experiência. Naturalmente que a inesgotabilidade de um discurso vinculado ao ensino e à aprendizagem institucionalizados manifesta-se dentro de certos limites. Mas há uma exigência específica, para a educação musical, em relação a esta articulação entre discursos e esta última característica. Concluo este trabalho comentando este ponto. Trata-se da indispensável busca de "rotas alternativas", como propõe Gardner (1995), para tratar os campos de conhecimento. Ele qualifica estas rotas alternativas de, "no melhor dos casos, uma metáfora ou tradução" (p.35). Acrescentaríamos que estas variações de percurso são, também, antecipações e fechamentos - mesmo que sempre transitórios - que intensificam a relação indivíduo-música.

Se estes discursos - o musical e o sobre música - têm usos e funções variados; poder para explicar, afirmar e congelar realidades, capacidades de fazer diferentes concessões e de reconstruírem-se cultural e historicamente - sem se esgotarem - seria incongruência tentar compreender, mesmo que parte disso, via rota única. Gardner (1994) é mais radical e não reduz esta exigência de pluralidade de tratamentos ao ensino de algum campo de estudo específico. Ele diz: "o amplo espectro de estudantes - e talvez da sociedade como um todo - estaria melhor servido se as disciplinas pudessem ser apresentadas de diversos modos e a aprendizagem pudesse ser abordada através de meios variados" (p.14).

É esta necessidade especial que a educação musical tem que enfrentar, se quiser ser eficiente, respeitando a força desses discursos. Para além da contemplação e da apreensão sensorial das coisas, convicção pré-moderna do significado de conhecimento, a articulação entre discursos coloca-nos, finalmente, diante de um problema e de uma provocação. Problema e provocação que são, nos dias de hoje, as próprias músicas, seus discursos e a exigência de formas alternativas para tratá-los. A educação musical pode tomar estas provocações como insulto e afronta; ou, como desafio e sedução. Só vejo esperança na segunda opção.

Bibliografia 

BARTHES, R. Aula. São Paulo: Cutrix, 1989.
BRUNER, J. Actual Minds, Possible Worlds. Cambridge: Harvard University Press, 1986.
CASTELLO, J. Resenha do livro A torre ferida por um raio, de Fernando Arrabal. In: Revista Isto É, 1344, 5/7/1995.
FROEHLICH, H. e CATTLEY, G. "Language, Metaphor, and Analogy in the Music Education Research Process". In: Journal of Aesthetic Education, Vol.25, No.3, Fall 1991.
GARDNER, H. A criança pré-escolar: como pensa e como a escola pode ensiná-la. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
Inteligências Múltiplas: A teoria na prática. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão. São Paulo: Martins Fontes, 1986.
ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.
LEVINSON, J. Musical Literacy. In: The Journal of Aesthetic Education, V.24, N.1, Spring, 1990.
MEYER, L. Emotion and meaning in music. Chicago: The University of Chicago Press, 1956.
Music, the arts, and ideas: Patterns and predictions in twentieh-century culture. Chicago: The University of Chicago Press, 1967.
NATTIEZ, J. J. Situação da semiologia musical. In: Semiologia da Música. Lisboa: Vega, s/d.
SEIXO, M. A. Por uma semiologia da música. In: Semiologia da Música. Lisboa: Vega, s/d.


1 - A aproximação entre literatura e os discursos que estamos aqui tratanto baseia-se no fato de que a literatura também reúne e mistura discurso e expressão, linguagem e símbolos, conteúdo e forma, multiplicidade de sentidos e afirmações.volta

2 - Grifo do autor.volta

3 - Tourinho, I. Usos e funções da música na escola pública de 1º Grau. In: Fundamentos da   Educação Musical. ABEM, 1993. volta

 

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