Aspectos da Mediação entre os Discursos Musical e sobre
Música na Prática Educativa
Irene Tourinho
Neste trabalho discuto algumas idéias a
respeito do discurso sobre música como mediador do processo de compreensão do discurso
musical na atividade de educação musical. O tema permite a identificação dos
significados de "discurso" com "linguagem" e formas de comunicação.
Permite, também, a identificação de "discurso" com "objetos", no
sentido de obras prontas ou em construção e com práticas, no caso da performance
musical. Parto destes entendimentos e penso como educadora, olhando para a escola regular
e imaginando algumas possibilidades de conexão entre o discurso musical e sobre música.
A idéia de que o discurso é uma
prática inegável da educação, seja na forma de linguagem ou de comunicação, comanda
estas reflexões. Distingo algumas características do discurso, indicando paralelos entre
ele e o discurso musical, pensando ambos como parte da educação. Discuto estas
características entendendo-as como condições para uma articulação eficiente entre o
discurso sobre música e o discurso musical na prática educacional. Concluindo, explicito
o que entendo ser a especificidade da educação musical em relação a esta articulação
entre discursos.
Algumas características dos
discursos na educação
Temos como "premissa já
familiar", que a linguagem é o "meio de troca através do qual a educação é
conduzida" (Bruner, 1986:121). Dificilmente seríamos capazes de imaginar uma
situação de sala de aula onde nenhum tipo de discurso verbal ou escrito acontecesse.
Reforçando esta evidência, causa-nos impressão saber da existência de um professor
mudo e apenas em raríssimas situações encontramos casos deste tipo. A constância do
discurso na educação já virou parte do nosso anedotário, quando dizem que o
"professor é aquele profissional que adora a própria voz". Porém, a inegável
existência e quantidade de discurso presente na educação não é garantia de uma
condução eficiente do processo educacional.
Vamos supor, inicialmente, que ao
falarmos em discurso sobre música tivéssemos que nos limitar a pensar apenas na
linguagem escrita ou falada. Para reduzir ainda mais as possibilidades, poderíamos
excluir desta categoria de linguagem escrita ou falada aquelas formas que, como a poesia
ou o conto, também podem ser sobre algo - como, por exemplo, a música - sem deixarem de
ser sobre elas mesmas. Concentrando dessa maneira a concepção de "discurso sobre
música", estaríamos transitando quase que apenas no âmbito reduzido da linguagem
técnica e instrumental. Esta parece ser a forma de discurso mais comumente encontrada na
escola. Poderíamos dar outros nomes para este tipo de linguagem, mas importa-nos
diferenciar, neste momento, uma linguagem voltada para o aprendizado circunscrito a
limites preestabelecidos de disciplinas e de alunos, das linguagens poéticas ou
simbólicas, sobre as quais este rótulo já é motivo de polêmica.
Partindo desta perspectiva mais
restrita, algumas características da linguagem são fundamentais para entendermos como o
discurso sobre música pode mediar a compreensão do discurso musical. O discurso musical,
por sua vez, foco inegável da educação musical, também divide, com o discurso sobre
música, certas propriedades que estas características apontam. Primeiro, observamos que
por mais técnica, instrumental ou funcional que seja, a linguagem nunca é neutra. Como
diz Bruner (1986), ela "impõe um ponto de vista não apenas sobre o mundo a qual se
refere mas sobre o uso da mente a respeito desse mundo" (p.121). O discurso musical,
como já disseram, é facilmente corruptível: pode servir a funções e causas muitas
vezes contraditórias. Segundo, sabemos que as palavras têm a capacidade de explicar, de
afirmar e finalmente de congelar determinadas realidades. A linguagem pode, então,
"não apenas facilitar mas também limitar aquilo sobre o que se comunica"
(Froehlich e Cattley, 1991:244). Também o discurso musical, numa medida talvez menos
analisável, pode afirmar ou congelar determinadas formas de fazer e experimentar música.
Uma terceira característica da
linguagem, essencial na educação, baseia-se na observação de Gombrich (1989) de que
"toda comunicação consiste em fazer concessões ao conhecimento da
pessoa que a recebe" (p.201). Nesse sentido, lembrando Lee Whorf, Gombrich ressalta
"que aquilo que a linguagem faz não é dar nome a coisas ou conceitos preexistentes,
mas articular o mundo da nossa experiência" (p.78). A forma como os discursos
musicais são construídos demonstra, também, diferentes articulações entre estes
discursos e as experiências sonoras que os indivíduos podem e querem receber.
Outra característica da linguagem que
encontra paralelos na música é a referência cultural e histórica que ambos os
discursos carregam. Só quando podemos compartilhar de um certo conjunto dessas
referências é que nos habilitamos para compreender e inferir valores sobre estas
manifestações. Por último, parafraseando o dito popular, lembramos que "mil
palavras não valem uma música", salientando a característica das obras de arte
como algo que sempre excede e extrapola os discursos sobre elas. Ao mesmo tempo, as obras
de arte também não se esgotam em si mesmas - porque sempre se pode fazer e dizer algo
mais sobre e com elas - e porque este "fazer e dizer algo", dá-se através de
discursos que sempre apresentam diferenciados níveis de ambigüidade e de arbitrariedade.
Estas cinco características paralelas
entre o discurso sobre música e o discurso musical formam a base de mediação sobre a
qual penso o processo de educação musical. Mais que reconhecê-las, imaginar as
possibilidades que elas indicam e cerceiam é condição para uma articulação
educacionalmente eficiente entre estes discursos. A educação musical, certamente, não
se restringe a apenas estas condições que este tema de hoje faz aparecer. Ao mesmo
tempo, o ideal seria poder tratar estas características e paralelos naquele espaço
imaginado e real onde elas se encontram. Entretanto, fragmentá-las agora é uma
fatalidade que serve para mostrar certas implicações desta articulação entre discursos
para a educação musical.
Para construir estas reflexões, teremos
que nos distanciar, pouco a pouco, daquela concepção restrita de discurso que serviu
para indicar as características que passarei a discutir. Aos poucos enfrentaremos
questões inevitáveis, tais como: (1) que nenhuma forma de discurso, sozinha, pôde ainda
se gabar de ser voz total do discurso musical; (2) que nosso divertimento, como
pesquisadores, é encontrar significados, o que nos leva a concluir que não criar
discursos sobre música é deixar grande parte do que é música condenada a não
significar.
Os discursos e a educação
musical
Voltando à primeira característica, a
diversidade de usos e funções dos discursos sobre música e musical exigem não apenas
uma interdependência entre eles mas, principalmente, que se articulem com a função
educativa a que servirão. É neste sentido que afirmamos que estes discursos,
especialmente na escola, não são neutros. Um professor pode, por exemplo, querer
conhecer o tipo de discernimento que o aluno tem sobre um determinado discurso musical.
Tanto pode ser um discernimento relativamente sofisticado, como sobre estilo ou gênero,
quanto um discernimento mais simples, como variações de andamento, ou de movimento
melódico. Pode ser, ainda, uma curiosidade apenas aberta, exploratória, do professor
sobre o conhecimento do aluno.
O objetivo de uma atividade como esta
encontra-se mais próximo do desejo de querer saber, ou seja, de pesquisar, que de
ensinar. A sistematização, organização e documentação desta atividade poderia
configurá-la como pesquisa. Infelizmente, a necessidade desta prática é bem mais
evidente que sua presença na educação. O discurso sobre música que acompanharia uma
atividade como esta seria, provavelmente, o menos intrusivo possível. De início, talvez
ele não falasse diretamente sobre a música, mas pela música. Seria dizer:
Como me ouve? Como me reconhece? Neste exemplo toma-se a música, de alguma maneira, como
um discurso quase que antropomórfico que tende a agir como se falasse por si própria.
O resultado do discernimento que o aluno
apresentasse, discursivamente, poderia ser sobre a música mas, poderia ser, também,
sobre a experiência deste aluno com aquela música, naquela situação. Quando o
discurso é sobre a experiência do indivíduo com a música, este discurso diz também
alguma coisa sobre a música. Isto é, os discursos nunca serão puramente subjetivos ou
objetivos. O discurso da experiência de um indivíduo com a música não será
necessariamente algo aplicável na educação, no sentido de que a escola usará
este discurso para ensinar música. Porém, será aproveitável como mais um
testemunho de relação indivíduo-música, de onde partem as orientações para este
ensino. Esta característica de não-neutralidade do discurso e da música pressupõe,
então, que há sempre uma perspectiva que qualifica o discurso e uma forma de ação
sobre e/ou com a música que acompanha este discurso.
Sob esta mesma característica, a
articulação entre o discurso sobre música e o discurso musical no ensino pode ser
motivada pelo objetivo - não de querer conhecer o tipo de discernimento que o aluno tem -
mas de levá-lo a um tipo de discernimento mais ou menos específico. Neste caso, parece
que usaríamos um discurso intencionalmente direcionado, mas que só teria sentido quando
se articulasse, de uma maneira gradativa e retomável, com outros discursos sobre música
- ampliando e conectando focos de discernimento - e com outros discursos musicais -
relacionando e contextualizando cada foco num conjunto maior de produções musicais.
As possíveis opções de usos e
funções da música e do discurso sobre ela já demonstram que estamos lidando com
linguagens e produtos, isto é, com práticas plurais. Esta essência plural e,
principalmente, a condição prática que faz a existência de ambos os discursos, revela
a capacidade que têm para explicar, afirmar e congelar realidades. Têm, ainda,
capacidade de promover transformações, mas elas acontecem por meio de novas
percepções, explicações e entendimentos da realidade.
Esta "capacidade", apontada
acima como segunda característica, revela, em síntese, o poder destes discursos. Por
mais complicado que seja definir, descrever, qualificar ou demonstrar como este poder
opera, a existência dele é amplamente reconhecida. O que às vezes nos esquecemos é que
este poder está inclusive no discurso chamado "contra-poder". Esta pregnância
do poder já virou advertência: "quanto mais livre for (...) o ensino, tanto mais
será necessário indagar-se sob que condições e segundo que operações o discurso pode
despojar-se de todo desejo de agarrar" ( Barthes, 1989:10). Talvez possamos trazer
para esta análise dos discursos, algumas idéias de Roland Barthes (1989) sobre
literatura1 Segundo ele, a
literatura tem três forças: (1) a de assumir muitos saberes; (2) a da representação, e
(3) a do jogo. As afirmações que Barthes faz a respeito destas forças permitem
recolocá-las neste contexto específico em que se evidencia a articulação entre o
discurso sobre música e o discurso musical.
Não há aqui a intenção de
identificar estas análises e nem de "semiologizar" esta reflexão, assunto que
desconheço; mas de tentar uma analogia para esta discussão sobre a interdependência de
discursos aqui proposta, salientando a característica de poder que identificamos
anteriormente. Em relação à primeira força, Barthes (1989) afirma que "a
literatura não diz que sabe alguma coisa, mas que sabe de alguma coisa; ou melhor:
que ela sabe algo das coisas - que sabe muito sobre os homens" (p.19)2. Serve-nos nessa afirmação, a consciência
de que tanto as músicas quanto os discursos "carregam" muito do que
identificamos como humano, como nosso. Drama, ironia, razão, ódio ou desejo, são
"imortalidades menores" - como disse Jorge Luis Borges, em torno das quais as
artes, e também a música, sempre "assumiram" algum saber. Articular música e
discurso não é suficiente para desvendar esses saberes, mas é tentativa infinda de pelo
menos confrontá-los.
Na educação, os "muitos
saberes" das músicas e de discursos sobre elas formam a experiência do aluno quando
as articulações entre discurso musical e discurso sobre música são ampliadas.
Pretende-se uma prática que busque articulações entre discursos sobre música, entre
discursos musicais e entre uns e outros. Esta ampla e trifurcada articulação não
esvazia o poder destes discursos. Deseja-se evitar que qualquer tipo de discurso,
isoladamente, venha a se estabelecer como poder.
A segunda força, a da representação,
parece ser, em relação à música, a mais polêmica de todas. Barthes fala da
representação do real, admitindo que este real seja mesmo o impossível - o não
representável - e imaginando a literatura como produto da nossa recusa em aceitar que
não há paralelismo entre o real e a linguagem (p.22). No caso da música, encontramos
aqueles que questionam a relação entre música e representação, afirmando que "a
música tem (...) essa faculdade de se afastar completamente, e à partida, do registro da
representação" (Seixo, s/d, p.13). Outros criam condicionamentos para esta
vinculação música-representação, colocando-nos, às vezes, diante do problema de
distinguir ou semelhar representação e significação (Nattiez, s/d; Levinson, 1990).
Para a educação musical, penso
simplesmente numa conceituação de representação que não se baseia apenas naquilo que
pode ser apreendido pelos sentidos, mas também possa ser apreendido pela imaginação,
pela memória ou pelo pensamento. Diante destas possibilidades, a apreensão do discurso
musical pode valer-se, igualmente, da percepção imediata que os sentidos possam
oferecer; de um discurso onde a imaginação mobilize a atenção e concentração; da
memória que reviva ou reforce identificações e vivências sonoras, ou de idéias e
reflexões que motivem uma experimentação de - ou do - discursos sonoros. Se todos estes
caminhos são possíveis, temos, portanto, a força da representação e a educação pode
usá-la para que músicas e discursos sejam compreendidos, fruídos e desejados.
Chegamos na força do jogo. Ela se
insere exatamente nestas possibilidades de aproximação em que, na medida que música e
discurso se distanciam, entra em jogo, não só uma lógica construída a partir de
informações e campos de conhecimentos bastante diversos, mas também a paixão daqueles
que têm a ousadia de enfrentar caminhos não ortodoxos para buscas nem sempre
convencionais. O jogo enfrenta o poder testando seus limites. A educação
institucionalizada, de saída, manipula com um poder que nem sempre se explicita. A
música e os possíveis discursos sobre ela, quando experimentados neste tipo de
instituição, podem expor sua própria fragilidade. Isso porque os saberes que a música
assume, as formas de representação que ela permite e os jogos que é capaz de articular,
interferem e ultrapassam aquilo que a instituição negocia como poder e saber. Talvez
esta seja uma explicação para o fato de que as escolas raramente "assumem" o
ensino de música, mesmo fazendo dela, sempre que necessário, uma das suas formas de
representar-se como instituição.
A terceira característica citada acima,
de que toda comunicação consiste em fazer concessões ao conhecimento da
pessoa que a recebe, é fundamental para a pedagogia, mas não se pode separá-la da
questão do poder. Fazer concessões é uma condição para não se tornar um discurso do
poder. Na escola, muitas concessões são necessárias. Por exemplo: os usos e as
funções dos discursos devem sempre se encontrar com os alunos, primeiro como
coletividade. O poder dos discursos sobre música e musicais não devem, em nome de uma
falsa concessão, escravizar os discursos que os alunos sabem e podem compreender.
Muitas vezes, porém, a música na
escola transpõe as fronteiras da concessão, degradando-se. Por exemplo: limitar-se
apenas ao discurso musical que é relevante para os alunos não significa fazer
concessão, mas ignorar que a música também cria experiências. Aceitar o
registro sonoro de uma infinidade de canções, como se fosse aprendizagem, é decretar
"estado de sítio" para a compreensão do discurso musical. A degradação dos
discursos sobre música na escola também tem seus exemplos. Perguntar aos alunos:
"Que música é esta?" e bater o ritmo de uma conhecida melodia, não é uma
concessão ao tão presente prazer da descoberta. É, antes, desprezar a necessária
discriminação auditiva e conceitual que faz parte do entendimento do discurso musical.
Defender a música na escola sob os argumentos de que os alunos adoram cantar, de que a
música libera as tensões individuais, ou porque a música torna os alunos mais
sensíveis, é reafirmar discursos que negam a função da escola, do professor, do aluno
e do conhecimento musical.
Estes discursos podem parecer datados,
já ultrapassados. Antes fossem. Ao citar as referências culturais e históricas como
quarta característica dos discursos sobre música e musicais, não pretendi enfatizar
esta questão do discurso escolar sobre música ou do discurso musical na escola. Mas esta
perspectiva também tem lugar aqui. Em outro trabalho comento, com mais detalhe, a forma
como a escola mantém um discurso infantilizado, adocicado, terapêutico ou puramente
recreativo para falar de música e para conduzir as experiências dos alunos com a
música.3 Mantém, ainda, um
repertório "escolar", como se fosse possível acreditar na existência de um
ouvido inocente ou virgem. Entretanto, o foco nas referências culturais e históricas do
discurso musical e sobre a música na educação liga-se especificamente ao processo de
compreensão do discurso musical. São justamente estas referências que vão criar as
relações entre conhecer, produzir e refletir sobre estes discursos.
Com base nestas referências, o discurso
sobre música e musical utiliza-se de uma linguagem construída a partir de vivências
comuns instaladas num certo contexto e época. Há, contudo, lógica e paixão nestes
discursos. Há lógica, por exemplo, na construção do discurso musical onde Chico
Buarque canta "Ah!, se já perdemos a noção da hora, se juntos já jogamos tudo
fora, me diga agora como hei de partir". O persistente cromatismo da melodia
apresenta uma construção lógica - e apaixonante - rapidamente verificável; porém, os
desvarios da paixão - e sua lógica - inserem aqui e ali inúmeras tensões e surpresas -
talvez os desvios e resistências de expectativas sobre os quais Meyer (1956, 1967)
teorizou - que oferecem ao ouvinte insinuações que vão qualificar a compreensão e
valoração da música.
Há, muitas vezes, um elevado grau de
subjetividade no discurso sobre música, especialmente quando não pretendem desmontar a
música em unidades, mas aprofundar a relação aluno-música. Durante muito tempo, este
discurso não pretendeu ser científico, quase se desculpava em apresentar-se como
filosófico e continua tímido como pedagógico. Porém, ao mesmo tempo que a ciência
positivista debilitava-se, a dose de verdade das especulações do sujeito se impunha e,
com ela, o incômodo do incerto e da dúvida presente nas teorizações. Se, por um lado,
a questão da subjetividade desafia as imposições rígidas de objetividade, por outro,
dá ao discurso sobre música a possibilidade de unir lógica e paixão, fazendo delas as
balizas da adequação do discurso à música e vice-versa.
Tanto os discursos sobre, quanto os
musicais, se reconstroem a partir da cultura e do tempo em que são criados. Estas
transformações podem levar à produção de discursos bem variados, às vezes até
excêntricos. Os tratamentos dispensados à vida e obra de Mozart são exemplos dos mais
relevantes, tanto pela quantidade de textos produzidos sobre o assunto, quanto pela sua
diversidade. Uma reportagem recente da revista The Economist (v.336, n.7924, 1995),
comenta como "cada era produz uma biografia de Mozart adequando-o ao tempo em que é
produzida" (p.80). Numa biografia de 1938, Mozart é interpretado a partir de suas
"imaginadas qualidades transcendentes, como se ele tivesse surgido de uma outra
esfera" (p.80). O autor usa o nome Amadeus como ponte entre Mozart e a divindade.
Na década de 70, uma interpretação da
figura irreverente, inconformada e espontânea do músico, serve para chamá-lo de "o
Mick Jagger do seu tempo" (p.80). Já numa obra recente, avaliada como fruto de
formidável quantidade de pesquisa, a análise da vida do compositor é plantada nos
princípios da psicologia freudiana. A reportagem ressalta como estas visões de época,
estas reconstruções de perspectivas, acompanham os discursos sobre o mundo da música e
as própria músicas. O autor deste encontro Freud-Mozart argumenta que "o pequeno
Mozart teria se transformado num instrumento da ambição paterna" e que Leopold
nutriu o gênio do filho, para "triunfar sobre as figuras de autoridade que lhe
causaram ressentimentos durante toda vida". Entre outros dados, encontramos uma carta
de Leopold onde ele escreve: "O sucesso e a fortuna de Wolfgang são nosso maior
revanche" (p.81).
As fixações e conjecturas dos que
produzem discursos e música, como comenta o autor desta biografia psicanalizada,
confundem-se com referenciais mais amplos e contextualizados. Os tipos de compreensão
sobre música que estes discursos oferecem, nem sempre são diretamente aplicáveis ao
ensino de música, principalmente na escola de 1o grau. Porém, cabe na
formação de qualquer indivíduo, tanto uma porcentagem de afirmações e realizações
de expectativas, como de vivência e ampliação de possibilidades de relacionamento com o
fenômeno musical. Neste sentido, não poder tratar diretamente certos discursos não deve
significar ignorá-los. De alguma maneira pedagogicamente honesta e útil - como diria
Bruner - estes trabalhos devem interferir na postura do professor e no ensino musical.
Às vezes, a experiência com releituras
de discursos musicais é um caminho educativo para compreender como a cultura e a
história vão lapidando nossa sensibilidade, razão e formas de expressão. Por exemplo,
confrontar "Quadros de uma exposição" no original de Mussorgsky, com a
reorganização sonora que o grupo Emerson, Lake and Palmer faz da mesma peça, quase cem
anos depois, é ampliar a experiência, preservando e reconstruindo a música. Muitos
desses exemplos poderiam, então, conduzir ao entendimento de que, tanto a prática
musical quanto a discursiva são múltiplas e transformáveis, mesmo aquelas de uma
determinada cultura e época. Estas experiências também nos ajudariam a encontrar,
simultaneamente, formas variadas de tratar a música e música variada para lidar com
diversos tipos de discursos.
Chegamos à última característica que
identificamos para tratar este tema. A evidência primeira desta característica - da
inesgotabilidade de ambos os discursos - fica demonstrada com a realização desse
encontro. Não estaríamos aqui para falar de articulações entre discursos, se
estivéssemos fadados a repetirmo-nos uns aos outros. Temos a clara consciência de que os
discursos sobre música não tem a pretensão de ser uma solução para os enigmas da
música. Podem pretender, no máximo, a ser uma declaração da existência de mais um
ponto de equilíbrio na ambigüidade e plurivalência inevitáveis que caracterizam ambos
os discursos.
É provavelmente por causa destas
incompletitudes e ambigüidades, às vezes apenas sentidas e não dissecáveis, que
travamos, como diz Castello (1995) esta "luta milenar e sem fim do instinto contra a
sistematização. Luta, no fim das contas, sem a qual nenhuma das partes pode sobreviver -
como o homem atado eternamente a sua sombra" (p.124). Esta inesgotabilidade das artes
e, portanto, de todas as formas de discursos que elas podem provocar, não as faz
sobre-humanas ou extraterrestres. Ao contrário, conforme comenta Hannah Arendt (1988),
"as artes, por ficarem no mundo por mais tempo do que tudo mais, são o que existe de
mais mundano entre todas as coisas" (p.261/2). É justamente esta insubordinação
mundana da música que desencadeia tantos desejos de articulações com, sobre, para e a
partir da música.
Não há necessidade de argumentar aqui
sobre esta característica de inesgotabilidade da música e dos discursos. A dificuldade
de explicar definitivamente o porquê desta característica só reforça a permanência
desta experiência. Naturalmente que a inesgotabilidade de um discurso vinculado ao ensino
e à aprendizagem institucionalizados manifesta-se dentro de certos limites. Mas há uma
exigência específica, para a educação musical, em relação a esta articulação entre
discursos e esta última característica. Concluo este trabalho comentando este ponto.
Trata-se da indispensável busca de "rotas alternativas", como propõe Gardner
(1995), para tratar os campos de conhecimento. Ele qualifica estas rotas alternativas de,
"no melhor dos casos, uma metáfora ou tradução" (p.35). Acrescentaríamos que
estas variações de percurso são, também, antecipações e fechamentos - mesmo que
sempre transitórios - que intensificam a relação indivíduo-música.
Se estes discursos - o musical e o sobre
música - têm usos e funções variados; poder para explicar, afirmar e congelar
realidades, capacidades de fazer diferentes concessões e de reconstruírem-se cultural e
historicamente - sem se esgotarem - seria incongruência tentar compreender, mesmo que
parte disso, via rota única. Gardner (1994) é mais radical e não reduz esta exigência
de pluralidade de tratamentos ao ensino de algum campo de estudo específico. Ele diz:
"o amplo espectro de estudantes - e talvez da sociedade como um todo - estaria melhor
servido se as disciplinas pudessem ser apresentadas de diversos modos e a aprendizagem
pudesse ser abordada através de meios variados" (p.14).
É esta necessidade especial que a
educação musical tem que enfrentar, se quiser ser eficiente, respeitando a força desses
discursos. Para além da contemplação e da apreensão sensorial das coisas, convicção
pré-moderna do significado de conhecimento, a articulação entre discursos coloca-nos,
finalmente, diante de um problema e de uma provocação. Problema e provocação que são,
nos dias de hoje, as próprias músicas, seus discursos e a exigência de formas
alternativas para tratá-los. A educação musical pode tomar estas provocações como
insulto e afronta; ou, como desafio e sedução. Só vejo esperança na segunda opção.
Bibliografia
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Cutrix, 1989.
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1986.
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GARDNER, H. A criança pré-escolar: como pensa e como a escola pode ensiná-la.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
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Lisboa: Vega, s/d.
SEIXO, M. A. Por uma semiologia da música. In: Semiologia da Música.
Lisboa: Vega, s/d.
1
- A aproximação entre literatura e os discursos que estamos aqui tratanto baseia-se no
fato de que a literatura também reúne e mistura discurso e expressão, linguagem e
símbolos, conteúdo e forma, multiplicidade de sentidos e afirmações.volta
2 - Grifo do autor.volta
3
- Tourinho, I. Usos e funções da música na escola pública de 1º Grau. In: Fundamentos
da Educação Musical. ABEM, 1993. volta